Crítica ao texto “O mito vegetariano: Alimentação, Justiça e Sustentabilidade”

Esta é uma crítica ao capítulo um do livro O mito vegetariano: Alimentação, Justiça e Sustentabilidade de Lierre Keith, em resposta a ideias muito problemáticas que o texto promove. 

Em relação a um dos principais pontos do textos, é verdade que vegans cometem vários erros e contradições, e que a agricultura causa mortes e sofrimentos. Também é compreensível a preocupação da autora com mudanças climáticas e com a escassez de recursos, coisas que podem prejudicar muitos indivíduos.

Entretanto, a autora do texto trata quase exclusivamente  de sustentabilidade e de impactos ambientais, como se essas fossem as únicas coisas que importassem (ignorando uma série de outros aspectos importantes), e fala de forma bucólica e vaga sobre árvores e sobre entender a natureza. Embora a ideia de sustentabilidade possa ter sua relevância, existem várias outras coisas que precisam ser consideradas. A autora apenas defende sua visão romântica da natureza e aborda impactos ambientais da agricultura, mas não trata das questões éticas ligadas à exploração de animais para consumo, e despreza o sofrimento dos mesmos, como no momento em que diz: “A grama e os herbívoros precisam um do outro tanto como predadores de suas presas. Essas não são relações de sentido único, e não acordos de dominação e subordinação. Nós não estamos explorando um ao outro por comer. Estamos apenas nos revezando.”

O texto comete várias falácias e erros. Menciona contradições cometidas por veganos como se isso justificasse explorar os animais. Isso é falso, porque se algumas pessoas associadas a uma ideia fazem ou dizem algo equivocado, isso não quer dizer que a ideia esteja equivocada (Peter Gelderloos e outros também cometem esses mesmos erros em seus textos sobre o tema). O texto procura justificar a morte e o uso de animais (de forma “humanitária” ou ecológica), mas não dá nenhum argumento fundamentado para isso. Também deveria ser aceito explorar humanos? Se não, a autora está sendo especista, sem dar justificativas para sua abordagem.

A autora também parece querer dizer que só existem duas alternativas: comer animais criados ecologicamente ou sustentar uma agricultura devastadora. Além de existirem outras opções além dessas, a autora parece esquecer que até as pessoas que comem carne também têm que comer vegetais, e assim colaborar com a agricultura de alguma forma.

“A verdade é que a agricultura é a coisa mais destrutiva que os seres humanos têm feito para o planeta, e mais da mesma não vai nos salvar.”

Embora seja importante uma agricultura que cause menos mortes e sofrimento, na verdade, estudos indicam que a agricultura causa menos danos que a pecuária.

A autora afirma:

“Eu estou perguntando sobre tudo o que morreu no processo, tudo o que foi morto para conseguir que haja comida em seu prato. Essa é a pergunta mais radical, e é a única questão que vai produzir a verdade. Quantos rios foram represados e drenados, quantas pradarias e florestas foram derrubadas pelo arado, quanto solo virou pó e soprado para os fantasmas? Eu quero saber sobre todas as espécies, não apenas os indivíduos, mas toda a espécie – o chinook (raça de cachorro silvestre), o bisão, os pardais gafanhoto, os lobos cinzentos. E eu quero mais do que apenas o número de mortos e enterrados.”

Não se pensa assim quando seres humanos são as vítimas. Existem sérias razões para discordar da perspectiva ecologista, e dar valor a seres vivos, ecossistemas ou espécies ao invés, ou acima, de indivíduos sencientes teria consequências inaceitáveis, principalmente em conflitos de interesse que envolvem humanos.

“Sem a compreensão da natureza da agricultura, da natureza da natureza, ou, finalmente, da natureza da vida…”. “Percebi, então, que essas pessoas que são tão profundamente ignorantes da natureza da vida…” São bastante frequentes no texto apelos à natureza, inclusive nos demais trechos citados, falácia que já foi exaustivamente refutada. Doenças, desastres, assassinatos e estupros são coisas naturais, mas isso não é motivo para venerá-las ou não combatê-las.

A autora defende que “temos de ser comidos tanto quanto nós precisamos comer” e que “para alguém viver, alguém tem que morrer“. Se esta afirmação for verdade, isso significa que é importante evitar e minimizar as mortes e o sofrimentos que isso causa, e não que não existe problema em causar mortes e sofrimento. Caso contrário, não haveria nenhum problema com assassinatos, estupros e escravidão. Mas as pessoas que pensam assim estão numa situação cômoda e sem ameaças de predação ou algo parecido, caso contrário, não agiriam assim, mas buscariam evitar o sofrimento, como agem quando sofrem de doenças ou parasitismo e tentam se curar. Assim, o texto falha em defender e justificar a exploração de animais não humanos, e comete vários erros ao tentar fazê-lo.

Texto editado em 05 de junho de 2016

11 comentários sobre “Crítica ao texto “O mito vegetariano: Alimentação, Justiça e Sustentabilidade”

  1. Olá, sou o tradutor do texto, sou vegetariano, e gostaria de fazer uns comentários sobre sua crítica. Embora eu não concorde com tudo que a autora diz, eu penso que sua crítica não apreciou o texto devidamente. Em primeiro lugar, seu texto parece partir da conclusão de que a autora defende a exploração de animais para consumo, o que é falso. A autora faz parte de um movimento que, entre outras coisas, luta pelo fim da domesticação, portanto ao criticar o veganismo, ela não está defendendo a exploração de animais. O erro é compreensível, pois a maioria dos leitores não compreende o que seria a crítica à domesticação.

    No seu texto, você afirma que a autora “só trata de sustentabilidade e de impactos ambientais, como se isso fosse a única coisa que importasse, e fala de forma bucólica sobre árvores e sobre entender a natureza(…) A autora só defende sua visão romântica da natureza e aborda impactos ambientais da agricultura, mas não trata das questões éticas ligadas à exploração de animais para consumo, e despreza o sofrimento deles”. Isso não é verdade. A autora trata sim de ética, por isso o conceito de justiça aparece no subtítulo. Você parece estar separando sustentabilidade, impacto ambiental e exploração de animais. A autora não separa essas coisas. Ela afirma que não é possível ter sustentabilidade explorando animais, a pecuária é completamente insustentável, principalmente por depender da agricultura. Ela afirma isso, e diz que concorda com todas as críticas dos veganos à exploração de animais. O que ela afirma é que deixar de explorar animais para consumo não é suficiente. Se o veganismo pretende substituir a pecuária pela agricultura, não apenas ele seria reformista, como também incoerente, porque a agricultura não subsististe sem a pecuária. O que pode ser entendido como uma defesa da pecuária é na verdade uma crítica ao sistema agropecuário e à domesticação como um todo.

    O que a autora afirma, e o que penso que muitos veganos concordam, é que não há nada intrinsecamente errado no ato de participar do ciclo de predação. Todos os primatas participam, em algum grau. Isso não justifica consumir os produtos da indústria agropecuária, pois ela é insustentável e antiética, sem dúvida. Se sua crítica se baseia na ideia de que a autora defende a criação “ecológica” de animais, então sua crítica se baseia numa compreensão equivocada do texto. Este equívoco parece vir acompanhado de um outro: a ideia de que “comer vegetais” é equivalente a ter um sistema de “agricultura”. É um fato reconhecido pela autora que a agricultura “mata menos” do que a pecuária, mas como desmontar uma coisa sem desmontar também a outra? A autora está apontando para as perdas biológicas causadas pela própria domesticação de plantas e animais, e seu texto parece interpretar isso errado, dizendo que ela valoriza o bem-estar da espécie acima da vida dos indivíduos… Como os indivíduos serão preservados se a espécie estiver Ameaçada? O impacto ambiental do sistema agropecuário está diretamente ligado à sobrevivência de todas as espécies e de todos os indivíduos.

    A crítica também acusa erroneamente a autora de usar a falácia de naturalização. Naturalização é justificar uma ação simplesmente no fato dela poder ser considerada “natural”. Não é o caso no argumento da autora, primeiro porque ela não está justificando a exploração de animais, mas sim condenando a agricultura em conjunto com a exploração de animais. Quando ela fala sobre a natureza, está apontando para o fato de que existe uma dependência entre os herbívoros e os solos férteis que a maioria das pessoas ignora. Esse argumento é baseado em afirmações biológicas, e não foi respondido nesta crítica.

    Na parte final, sobre comer e ser comido, vida e morte, penso que faltou compreender o que se trata de uma metáfora. Não uma justificação do ato de comer carne, principalmente de animais criados em regimes de exploração, mas o fato de que, quando morremos, servimos de alimento para outros seres, assim como, para vivermos, nos alimentamos da vida que existe em outros seres. Não quer dizer que devemos comer carne, mas eu não vejo nenhum argumento vegano contrário às práticas dos povos caçadores-coletores. Esquimós, por exemplo, se alimentam basicamente de carne. Isso não é um problema ambiental, nem ético e nem de saúde para eles, mas não serve de justificação para que comamos cerna se não estamos inseridos naquele mesmo contexto. O que a autora afirma é que existem contextos de vida humana, ainda que distantes da realidade civilizada em que vivemos, nos quais o consumo eventual de carne não é um problema. Como você mesmo apontou, a questão depende da situação. Portanto não é uma questão purista, moralista ou absoluta.

    Curtido por 1 pessoa

  2. Olá Janos,

    Obrigado pelo comentário!

    Uma coisa que pode causar confusão é a palavra “exploração”. Na crítica ao texto ela é usada mais no sentido de causar danos, matar, causar sofrimento, e não como sinônimo de criação industrial de animais ou pecuária. Essa distinção é importante, porque obviamente os indivíduos podem ser prejudicados de maneiras que não envolvam criação industrial ou domesticação. Por exemplo, uma pessoa que é morta, roubada ou estuprada na rua é prejudicada enormemente com isso, embora não haja domesticação envolvida. Essa é uma das limitações que tentaram ser expostas na crítica ao texto.

    Por isso, a domesticação não é o único problema. De fato, como mencionado no texto, existem muitos problemas causados sérios pela civilização e pela domesticação. Para melhorar isso, algumas pesquisas recentes buscam foras de minimizar os danos da agricultura, por exemplo, reduzindo a área e recursos necessários. Porém os problemas não se resumem apenas a isso, e algumas soluções comumente propostas, como o retorno a sociedades de caçadores-coletores, podem ser ainda piores e envolver muito sofrimento. Ver, por exemplo: https://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2012/05/debunkingidyllicviewhorta.pdf

    Quanto à separação de sustentabilidade, impacto ambiental e exploração, a ideais de que tais aspectos não devem ser separados é algo comum no movimento ambientalista em geral e pode estar relacionado ao holismo ético. Essa visão também tem recebido extensas críticas por deixar de lado e se opor aos interesses dos indivíduos. A crítica de Steve Sapontzis é um ótimo exemplo. http://digitalcommons.calpoly.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1244&context=ethicsandanimals

    Você e a autora falam sobre participar do ciclo da predação, o que pode ser apenas uma metáfora ou uma tentativa de argumento a favor da caça. Se for uma metáfora fazendo alusão aos ciclos de nutrientes, isso tem pouca implicações, pois após a morte um indivíduo não pode mais ser prejudicado ou beneficiado e portanto o que ocorre com o seu corpo lhe é indiferente, independentemente da importância disso para a fertilidade do solo. Se for o segundo caso, o fato de todos primatas participarem de tal ciclo não justifica praticar a caça (assim como, é claro, o fato de primatas praticarem coerção sexual não justifica de forma alguma o estupro) e isso é mais um exemplo de apelo à natureza. Portanto, nesse caso há sim algo negativo em participar do ciclo da predação, a saber, os indivíduos mortos são prejudicados com isso. Esse fato é bem reconhecido quando uma pessoa é a vítima, e é feito o possível para salvá-la; ninguém diz: “é melhor não fazer nada, todos os primatas participam do ciclo da predação de alguma forma”. O mesmo pode ser dito sobre a dependência entre solos férteis e herbívoros na natureza. Para mais detalhes: http://www.pensataanimal.net/component/content/article?id=358:salvando-o-coelho-da-raposa-1

    É comum acreditar que a preocupação com indivíduos requer a preocupação com espécies, mas há motivos para discordar fortemente disso, porque essa ideia pode levar ao que é pior para os indivíduos e constitui uma perspectiva especista que não é adotada em casos que envolvem humanos. Além disso, a importância dada aos indivíduos é arbitrariamente considerada como sendo inversamente proporcional à população, e espécies de grande porte ou consideradas “bonitas” ou “fofas” recebem maior valor. https://contragaia.wordpress.com/2015/07/30/magnus-vinding-a-ilusao-conservacionista/

    Neste texto também há exemplos claros de intervenções ecologistas pró-biodiversidade que, na verdade, são prejudiciais: http://www.animal-ethics.org/devemos-dar-consideracao-moral-individuos-vez-especies/

    “[…] eu não vejo nenhum argumento vegano contrário às práticas dos povos caçadores-coletores. Esquimós, por exemplo, se alimentam basicamente de carne. Isso não é um problema ambiental, nem ético e nem de saúde para eles, mas não serve de justificação para que comamos cerna se não estamos inseridos naquele mesmo contexto. O que a autora afirma é que existem contextos de vida humana, ainda que distantes da realidade civilizada em que vivemos, nos quais o consumo eventual de carne não é um problema.”

    Um problema sério com essa ideia é preocupar-se com o que é um problema ambiental, ético e de saúde “para eles”. Isso é muito frequente nos debates sobre o tema, ou seja, a preocupação apenas com o que afeta humanos. Isso é semelhante a avaliar os problemas do racismo para os brancos e os problemas do machismo para homens. Mas, ao criticar o especismo obviamente deve ser dado foco às suas vítimas. Logo, há sim um problema: o sofrimento e a morte animais caçados. Isso não quer dizer que o contexto em que tais povos vivem não lhes dê necessidades diferentes, mas também não é um motivo para neglicenciar o que ocorre com os animais afetados e dizer que isso não é um problema. Para estes a origem do dano é irrelevante, não importa se é a criação industrial, um caçador ou um processo natural. Além disso, é comum que esse problema seja tratado com indiferença por haver uma preferência pelo status quo. https://en.wikipedia.org/wiki/Status_quo_bias

    Portanto, os problemas da civilização não justificam a caça ou qualquer prejuízo causado a animais não humanos como alternativa. O mesmo paralelo feito entre criação industrial e caça (como ocorre na natureza) pode ser feito entre indústria de estrupo e estupro eventual (como ocorre na natureza), e estendido a outros tipos de dano, como roubo, assassinato, canibalismo, infanticídio, agressão, opressão, etc.

    Curtido por 1 pessoa

    1. Olá,

      Muito obrigado pela resposta detalhada e cheia de links informativos. Mas ainda penso que sua resposta não está levando em consideração o ponto de vista da autora. Nenhum dos autores que você citou, tanto quanto pude perceber, leva em consideração a crítica à civilização ou o ponto de vista da anarquia verde, que são as bases da autora. Você está respondendo a afirmações que a autora de fato não fez, nem neste capítulo nem em qualquer outro do livro. Portanto, o que você está atacando é um espantalho. Se a autora de fato defendesse alguma prática anti-ética que envolve o sofrimento e a morte de animais, ela estaria sendo incoerente. A crítica à domesticação não pode ser isolada de uma compreensão ética, pelo contrário, ela parte de uma compreensão ética que condena não apenas o que afeta imediatamente a vida dos indivíduos, mas também as consequências prejudiciais indiretas e a longo prazo, que só são visíveis quando consideramos também o ponto de vista macro.

      Pelo que eu vejo no seu site e nos autores que você cita, você defende um ponto de vista utilitarista, e essa é a base da sua crítica. Você está dizendo que a domesticação não é o único problema, mas o que acaba por dizer é que ela não é um problema em si, já que o problema se limita ao que pode gerar mais sofrimento do que felicidade. O utilitarismo parte da ideia de que a felicidade é intrinsecamente boa e o sofrimento é intrinsecamente ruim. Se você parte dessa ideia, dificilmente poderá compreender a crítica da autora, já que ela parte de outro ponto de vista. Logo, a questão central é a própria fundamentação do utilitarismo.

      Não é preciso dizer que o utilitarismo é alvo de muitas críticas, e eu discordo que todas elas possam ser dispensadas com o simples argumento de que pensar de outro modo é “especismo”. O problema do utilitarismo não é que ele é contra-intuitivo, e sim que ele é realmente mal-fundamentado, parte de uma concepção idealista da moral, que a coloca acima da existência. A questão, então, passa a ser metafísica.

      Embora a maioria dos anarquistas verdes adote uma dieta sem carne, a maioria dos veganos, infelizmente, não tem sequer um posicionamento político anti-Estado, anti-capitalista, anti-machista ou anti-autoritário. O texto de Oscar Horta, por exemplo, pretende criticar autores como Tom Regan, mas parte sempre do utilitarismo. A pretensão de dizer que a natureza é criticável depende da confirmação de que o utilitarismo é a única interpretação verdadeira e válida a respeito da ação humana. Ao mesmo tempo, só pode acreditar no utilitarismo quem já vê a natureza como ameaçadora. Esta visão da natureza é tão questionável quanto a visão idílica, de que na natureza só há coisas boas. Mas a verdadeira questão sobre a natureza não está relacionada à razão entre felicidade e sofrimento, como quer o utilitarista. A razão pela qual não podemos julgar a natureza não é propriamente ética, e sim metafísica. Acreditar que um sistema moral criado por uma mentalidade especificamente européia pode ser usado como base para julgar toda e qualquer ação, inclusive a ação não-humana, é nada mais que etnocentrismo. Para terem a legitimidade que pretendem ter, os utilitaristas precisariam provar em primeiro lugar que suas premissas são verdadeiras, que a felicidade é intrinsecamente boa e o sofrimento é intrinsecamente ruim, por exemplo. Não podem fazer isso, pois se trata de um axioma, um pressuposto não científico e não verificável.

      A razão pela qual o utilitarismo teve sua ascensão e sua queda na história do pensamento é que superamos a limitação das considerações de base idealista, que não partem do método empírico, tais como a existência de coisas intrinsecamente boas, de um bem intrínseco, e de um mal intrínseco. As pessoas que ainda se apegam a tais concepções debatem em vão, já que seu ponto de vista parte de uma crença que não é racional. Elas só podem convencer quem já está predisposto a ver o mundo desse modo.

      Isto causa uma dissonância entre nós, pois do meu ponto de vista você está vendo o mundo de cabeça para baixo. Como se a crítica não-utilitarista deixa de lado os interesses individuais, e não como se fosse o utilitarismo que, ao priorizar os interesses individuais, deixasse de lado todo o resto. De todo modo, os autores que você cita não estão de fato criticando a autora. Estão criticando concepções que você erroneamente relaciona à autora, mas que não são de fato defendidas pela autora. O holismo ético é um deles.

      Então, por um lado você não está de fato criticando a autora, mas criticando a concepção do ambientalismo holístico, da ecologia profunda, do conceito de Gaia, o que é muito válido e interessante, mas não se relaciona de fato com o texto da Lierre Keith. Ela mesma se opõe a tais concepções. Por outro lado, você defende uma concepção utilitarista que prioriza os interesses individuais, e esse ponto de vista é realmente incompatível com o ponto da autora, o que por si só não quer dizer que ela está errada, apenas que ela não é utilitarista, o que é uma posição que eu considero razoável.

      Por exemplo, você diz que um indivíduo não pode mais ser prejudicado após sua morte, porque o que resta é somente seu corpo. Isso depende de uma concepção que separa o corpo da mente (ou da atividade mental), e dá prioridade à segunda como definidora do caráter do ser. Isso é somente um ponto de vista, não é necessariamente verdadeiro. Temos grandes autores defendendo coisas diferentes, e este e um debate que está longe de ser encerrado. No melhor dos casos, trata-se de uma algo que ainda não está definido, e por isso não podemos afirmar como se fosse algo óbvio, assim como não é óbvio que devemos considerar somente o que pode prejudicar ou beneficiar indivíduos. O que consideramos como sofrimento e como benefício também depende de construção social, não é algo dado nem diretamente observável. Para além do sofrimento e do benefício existe o sentido ou o significado. O sofrimento pode ter um significado que o coloca acima de um benefício relativo. Esse significado tem tanto valor para a consideração ética quanto o prazer e a dor. A caça, como a religião, não precisa ser justificada. Ela está inserida numa rede de significados que foi construída por meio de processos históricos, materiais e experienciais e não pode simplesmente ser taxada de “inadequada”. Pode ser inadequada para aqueles que desconstruíram seu significado, mas essa desconstrução não é em si um imperativo moral, a menos que você apresente um fundamento ético para isso. Seu fundamento ético parece ser o utilitarismo, que é somente uma perspectiva ética, não representa a ética como um todo.

      A prática da caça não pode ser comparada à prática do estupro só pelo sofrimento causado, do mesmo modo que o estupro não pode ser comparada ao ato de nascer só por causa das dores do parto. O que deve ser levado em consideração é qual o lugar de tal ação na história desses seres, como ela surgiu e qual o significado dessa ação. Não é preciso ser um utilitarista para concluir que o estupro é errado, embora classificar uma ação como errada não seja o mesmo que eliminá-la por completo da existência. Em todas as culturas existe a crença de que prejudicar o outro somente pelo seu próprio prazer é uma coisa condenável. A caça, porém, não é considerada como um sofrimento que tem como única motivação o prazer de que o pratica. Se você não compreende a predação como uma cooperação complexa entre duas ou mais espécies, então eu realmente não sei o que te dizer. Lendo os textos que você indica, eu não vejo nenhum motivo racional para pensar na predação como algo diferente disso. E não vendo os seres humanos como seres separados da natureza, me parece razoável que eles também participem dessa forma de organização.

      Se eu fosse capaz de perceber a predação como algo necessariamente negativo ou prejudicial pelo simples fato de ela envolve a morte de indivíduos, e ainda assim eu justificasse minha ação de comer carne com base no fato de que isso existe na natureza, aí sim seria apelo à natureza. Assim como seria um apelo à autoridade se eu dissesse que a predação é ruim porque Stuart Mill afirma que o sofrimento é intrinsecamente ruim. Partir da ideia de que a predação não é necessariamente ruim não significa justifica a ação de deixar de socorrer uma vítima, por exemplo. Do ponto de vista deontológico, isso pode ser feito pela percepção de um dever ético. A reflexão ética, porém, pode revelar que se opor radicalmente à predação é equivalente a se opor à própria existência da morte, à própria finitude do ser, que é um fato da natureza e está fora do alcance de qualquer consideração ética.

      Se sua crítica à consideração ética em relação a espécies se limita ao fato de que ela não é aplicada corretamente, isto é, é especista pois não se aplica a humanos, ou não se aplica a todos as espécies e somente às que consideramos mais belas ou valorosas, então não é uma crítica dirigida à autora, e sim a perspectivas conservacionistas, por exemplo, e não vejo como isso se relaciona com o texto, pois a autora se opõe diretamente ao conservacionismo e vertentes ambientalistas afins. Concordo plenamente que intervenções ecologistas pró-biodiversidade podem e com frequência são prejudiciais. Mas não podemos concluir que a falha se resuma a não adotar uma perspectiva individualista. Além disso, a autora não defende intervenções desse tipo, então, novamente, sua crítica não aplica.

      A questão sobre condenar ou não práticas de povos ditos primitivos não se resume à suposta divisão entre “relativismo moral” e “ética absoluta”. O que seria preciso para condenar eticamente as práticas culturais de um povo? Seria preciso um sistema ético normativo que não esteja constrangido pelas especificidades do processo de construção cultural de um dado povo. Mesmo sem eliminar a possibilidade de que tal sistema ético exista, o que pode explicar a prevalência da proibição do incesto, por exemplo, não podemos afirmar que a proibição da caça ou do consumo de carne se encaixe no mesmo caso. Em outras palavras, quando dizemos que é errado caçar, podemos estar convencidos que essa é a única posição incoerente com especismo, ou seja, que leva em consideração os interesses de indivíduos de espécies não-humanas, mas podemos estar somente incorrendo em etnocentrismo, que é considerar como válidas somente as considerações éticas de uma dada cultura, que geralmente é considerada mais “avançada” e “evoluída”, o que justificou a colonização, por exemplo. Se o utilitarismo é uma teoria tipicamente ocidental, se ela não pode ser considerada uma verdade universal, então tratar a caça como algo errado ainda seria considerar apenas o “para eles”, no caso, o ponto de vista da cultura que defende tal visão de mundo utilitarista. Não é suficiente incluir todas as espécies no seu conceito de sofrimento se esse conceito, em si, é etnocêntrico. Outros povos não consideram a dor e a morte como intrinsecamente ruim (e muitos nem sequer compreendem o fim do as atividade corporal como morte, e sim como transformação. O povo do cervo, por exemplo, acredita que o cervo morto pelo caçador se transforma em humano por meio desse ato, como nós acreditamos que a lagarta não morre para dar lugar à borboleta, mas se transforma), e a não ser que tenhamos uma base para demonstrar que estão fundamentalmente equivocadas quanto a isso, não podemos desconsiderar o significado da dor para eles. Mas, novamente, isso seria uma questão metafísica, e não ética. Seria uma questão sobre quem tem a concepção mais correta da realidade da vida e da morte, da própria existência, e isso não é algo tão simples assim.

      Para que povos caçadores considerem a caça em si como problema, eles teriam que mudar sua concepção de mundo. Teriam, em outras palavras, que se tornar utilitaristas. A não ser que o utilitarismo seja a palavra da salvação para todo ser humano, isso não irá acontecer. Já sua posição de pretender se opor a todo e qualquer tipo de sofrimento, mesmo aquele que claramente ocorre por processos naturais, também pode ser problematizado. O que leva um ser humano a pensar que, diferente de qualquer outro ser, ele pode e deve se revoltar e se opor ao funcionamento da própria natureza que o criou? Eu pessoalmente não consigo ver nenhuma outra razão para isso senão uma soberba e uma arrogância e, sim, um especismo enorme. A própria ideia de que seres humanos estão equipados com aparelhos cognitivos capazes de julgar moralmente não somente as próprias ações, mas as ações de todos os seres, independente do contexto, inclusive de fenômenos da natureza, é por si só uma afirmação que me parece contradizer a concepção biológica da evolução. Se a evolução é verdadeira, nossos cérebros foram selecionados para lidar com questões específicas à nossa sobrevivência, e não para determinar o que deve existir ou deixar de existir na natureza.

      De outro ponto de vista, todas as nossas considerações éticas são centradas no que é bom “para nós”. Quando você diz que não é bom matar animais porque eles possuem o interesse de viver, não está simplesmente considerando os interesses de outros, mas os seus próprios interesses de ser coerente com determinada visão ética, além da sua própria concepção sobre o que vem a ser um “interesse”, o que é vida, o que é morte, o que é matar, etc…

      Se por outro lado eu ou a autora estivéssemos dizendo que matar animais agora é justificável simplesmente porque “a civilização tem problemas”, então você estaria certo. É claro que isso seria absurdo. Mas o contrário também não me parece justificável, ou seja, que colonizar, impedir os povos caçadores de realizarem suas práticas, e espalhar os valores e as crenças da civilização ocidental (e especificamente do utilitarismo) seria justificável porque “matar é errado”. Nós queremos considerar a vida dos animais como tão valorosa quanto a nossa, queremos considerá-los como iguais e não como inferiores. E nenhuma cultura fez isso tão bem quanto esses mesmos povos que praticam a caça, por mais que isso pareça contraditório. Quando falamos do ponto de vista mais amplo, queremos dizer que, embora não sejam anjos e não tenham eliminado todo e qualquer sofrimento do mundo, embora matem e comam animais como nós, não os destroem e não os matam como nós. A fazermos isso industrialmente nós transformamos animais e pessoas em coisas a serem exploradas. A caça no seu sentido original, porém, é um ritual sagrado coerente com um sistema ético, com valores e crenças que envolvem justiça, compaixão e respeito à vida. Nenhum ato de estupro ou outro tipo de opressão pode ser incluído coerentemente em qualquer desses sistemas. Isso diferencia categoricamente uma coisa da outra, e qualquer aproximação que você tente fazer dessas coisas é como acidental, não pode ser considerada como determinante para dizer que ambas as coisas são igualmente condenáveis. A única forma de condenar uma ação é por meio de um sistema moral condizente com as condições nas quais essa ação é realizada. Ver a predação como equivalente a um crime é uma visão parcial e muito limitada, que só pode fazer sentido quando se parte de algum tipo de utilitarismo, e a não ser que você creia que o utilitarismo é uma concepção ética universal e absolutamente verdadeira, não tem sentido defender tal coisa.

      Curtido por 1 pessoa

  3. Oi Janos 🙂

    -Nenhum dos autores que você citou, tanto quanto pude perceber, leva em consideração a crítica à civilização ou o ponto de vista da anarquia verde, que são as bases da autora. Você está respondendo a afirmações que a autora de fato não fez, nem neste capítulo nem em qualquer outro do livro. Portanto, o que você está atacando é um espantalho.

    Ao longo desta e das outras respostas, são apontadas algumas semelhanças entre os seus comentários e o texto da autora, e posturas ambientalistas/ecologistas como o uso do apelo à natureza, o ecocentrismo e outras. Participantes do movimento anti-civilização como a Deep Green Resistance, Derrick Jensen, Kaczynski e outros claramente têm abordagens semelhantes, mas não vou citá-los aqui. Este texto (http://pt.protopia.at/wiki/Carta_de_Princ%C3%ADpios_da_Deep_Green_Resistance) basta para ilustrar que é inegável a presença de algumas posições ambientalistas criticadas aqui nas ideias de muitos participantes deste movimento. Isso não quer dizer que ambas as posturas sejam idênticas, mas sim que têm pontos em comum que levam a discriminações injustas e têm consequências desastrosas se levados a sério amplamente. Trata-se de atacar ideias potencialmente nocivas, e não de atacar a autora que escreveu. Também são apontadas outras falácias que aparecem explicitamente, como a ad hominem.

    -Se a autora de fato defendesse alguma prática anti-ética que envolve o sofrimento e a morte de animais, ela estaria sendo incoerente.

    Além do que já foi dito, deve ser ressaltado que está claro que a caça e práticas semelhantes causam o sofrimento e a morte de animais. Também são algo que na prática promove de certa forma o especismo (em particular a ideia de que está ok prejudicar e matar animais), o qual causa mais sofrimentos e mortes a longo prazo.

    -A crítica à domesticação não pode ser isolada de uma compreensão ética, pelo contrário, ela parte de uma compreensão ética que condena não apenas o que afeta imediatamente a vida dos indivíduos, mas também as consequências prejudiciais indiretas e a longo prazo, que só são visíveis quando consideramos também o ponto de vista macro.

    O que é o o ponto de vista macro nesse caso? De qualquer forma, a ideia por trás de minha crítica e respostas é sim levar em conta as consequências prejudiciais indiretas e a longo prazo e concordo que isso seja extremamente importante.

    -Pelo que eu vejo no seu site e nos autores que você cita, você defende um ponto de vista utilitarista, e essa é a base da sua crítica. Você está dizendo que a domesticação não é o único problema, mas o que acaba por dizer é que ela não é um problema em si, já que o problema se limita ao que pode gerar mais sofrimento do que felicidade. O utilitarismo parte da ideia de que a felicidade é intrinsecamente boa e o sofrimento é intrinsecamente ruim. Se você parte dessa ideia, dificilmente poderá compreender a crítica da autora, já que ela parte de outro ponto de vista. Logo, a questão central é a própria fundamentação do utilitarismo.

    Ao contrário do que você diz e usa como base para grande parte deste comentário, não sigo o ponto de vista utilitarista. Minha posição é que não existe até agora uma teoria ética perfeita, mas elas podem ser aproveitadas para avaliar diferentes situações. Embora acredite que certos autores utilitaristas têm ideias pertinentes, um dos motivos por que discordo do utilitarismo é ele não levar em conta, nas principais vertentes, a distribuição da utilidade, o que outras teorias consequencialistas como o prioritarismo, o igualitarismo e o suficientarismo consideram. Isto é, o utilitarismo em geral se preocupa apenas em maximizar a utilidade (o bem-estar, por exemplo), sem dar importância para como ela é distribuída entre os diferentes indivíduos. Você poderia adaptar seu comentário substituindo utilitarismo por consequencialismo ou algo assim, por isso, vou responder especificamente outros trechos do seu comentário.

    Seja como for, o antiespecismo e outras conclusões defendidas aqui também são compatíveis com teorias como a deontologia e a ética da virtude. Resumidamente, por exemplo, alguém pode criticar a caça por violar os direitos das vítimas (que prevalece sobre o suposto direito de caçar ou sobre a liberdade, da mesma semelhante ao que ocorre em casos de estupro ou canibalismo), ou também pode dizer que temos o dever positivo de ajudar aqueles em necessidade, e alguns autores têm desenvolvido essas ideias em mais detalhes. Além disso, teorias consequencialistas preferencialistas podem defender que a caça e outras coisas frustram preferências das vítimas, sem levar em conta o sofrimento diretamente, etc.

    -Embora a maioria dos anarquistas verdes adote uma dieta sem carne, a maioria dos veganos, infelizmente, não tem sequer um posicionamento político anti-Estado, anti-capitalista, anti-machista ou anti-autoritário.

    Como dito antes, mesmo que esses posicionamentos sejam importantes, usar o fato de a maioria dos veganos (que é, inclusive, um forte alvo de críticas antiespecistas) não terem esses posicionamentos para discriminar os animais, no sentido já explicado aqui, é uma falácia ad hominem, falácia que o texto criticado parece empregar bastante. Não existe nenhuma relação direta entre o antiespecismo e posições políticas reacionárias. Por outro lado, por exemplo, é fácil perceber autoritarismo em discursos que buscam manter o status quo e perpetuar a matança e o sofrimento de seres sencientes, ou que justificam prejudicar indivíduos em nome do “todo” ou outras entidades abstratas.

    -Mas a verdadeira questão sobre a natureza não está relacionada à razão entre felicidade e sofrimento, como quer o utilitarista. A razão pela qual não podemos julgar a natureza não é propriamente ética, e sim metafísica. Acreditar que um sistema moral criado por uma mentalidade especificamente européia pode ser usado como base para julgar toda e qualquer ação, inclusive a ação não-humana, é nada mais que etnocentrismo. Para terem a legitimidade que pretendem ter, os utilitaristas precisariam provar em primeiro lugar que suas premissas são verdadeiras, que a felicidade é intrinsecamente boa e o sofrimento é intrinsecamente ruim, por exemplo. Não podem fazer isso, pois se trata de um axioma, um pressuposto não científico e não verificável.

    Você parece defender que o que não foi criado pela mentalidade europeia, ou o que foi criado pela natureza, ou por deus, deve ser necessariamente obedecido sem questionar. Isso às vezes é baseado na crença de que há uma inteligência ou sabedoria por trás da natureza, e isso, mais do que tudo, é algo não científico e que não pode ser verificado, é algo assumido e tomado como certo. Essa ideia tem sido refutada há bastante tempo, sendo assim, não há porque respeitar religiosamente as criações da natureza, e a origem da crítica a essa posição é irrelevante. E mesmo que fosse demonstrado que há tal inteligência, ainda assim haveria razões para aceitar modificações.

    Embora o utilitarismo não seja a única teoria capaz de questionar o viés do status quo e o caráter normativo daquilo que é natural, uma possível resposta é que os animais mostram evitar o sofrimento, e que este lhes é prejudicial; e que isso é intuitivo e fácil de perceber. Ou seja, não importa o local onde algum ser humano primeiro sistematizou essas ideias, mas sim o fato de que há evidências de que seja assim, enquanto não há evidências de que indivíduos valorizem entidades abstratas, por exemplo.

    -A razão pela qual o utilitarismo teve sua ascensão e sua queda na história do pensamento é que superamos a limitação das considerações de base idealista, que não partem do método empírico, tais como a existência de coisas intrinsecamente boas, de um bem intrínseco, e de um mal intrínseco. As pessoas que ainda se apegam a tais concepções debatem em vão, já que seu ponto de vista parte de uma crença que não é racional. Elas só podem convencer quem já está predisposto a ver o mundo desse modo.

    Seguindo sua visão, as pessoas que se esforçaram para desenvolver tratamentos para doenças e prevenção de desastres naturais para evitar o sofrimento estariam erradas, porque não existem coisas intrinsecamente boas ou más. Geralmente é feito um apartheid das espécies, concordando com o uso dessas coisas apenas quando beneficiam humanos ou outros valores importantes para eles, e discordando quando se trata de respeitar animais não humanos.

    -Como se a crítica não-utilitarista deixa de lado os interesses individuais, e não como se fosse o utilitarismo que, ao priorizar os interesses individuais, deixasse de lado todo o resto.

    Como comentado acima, o utilitarismo muitas vezes não tem consideração pelos interesses dos indivíduos, por não levar em conta a distribuição de utilidade.

    Seja como for, não está claro o que é “todo o resto” que está sendo deixado de lado.

    -De todo modo, os autores que você cita não estão de fato criticando a autora. Estão criticando concepções que você erroneamente relaciona à autora, mas que não são de fato defendidas pela autora. O holismo ético é um deles.

    -Então, por um lado você não está de fato criticando a autora, mas criticando a concepção do ambientalismo holístico, da ecologia profunda, do conceito de Gaia, o que é muito válido e interessante, mas não se relaciona de fato com o texto da Lierre Keith. Ela mesma se opõe a tais concepções.

    🙂 É muito legal que você e a autora pensem assim, embora haja alguns pontos comuns entre suas ideias e as posições que você mencionou, e outras como o biocentrismo e o conservacionismo, além das falácias lógicas já mencionadas. São estes pontos os alvos das críticas, independentemente de como se queira denominá-los e classificá-los. Uma pessoas não precisa defender certas ideias abertamente para revelar traços delas, mesmo que se oponha a elas. Eis alguns exemplos, citando novamente a autora:

    “salvar o planeta – as últimas árvores que testemunham o passar do tempo, os restos de deserto que ainda nutrem espécies em desvanecimento”;

    “Pode se alimentar os animais com grãos, mas que não é essa a dieta para a qual foram concebidos.”

    “A verdade é que a agricultura é a coisa mais destrutiva que os seres humanos têm feito para o planeta, e mais da mesma não vai nos salvar. A verdade é que a agricultura exige a destruição em massa de ecossistemas inteiros. A verdade é também que a vida não é possível sem a morte, que não importa o que você come, alguém tem que morrer para alimentá-lo.”

    “Eu quero saber sobre todas as espécies, não apenas os indivíduos, mas toda a espécie”

    “Podemos discordar sobre a melhor forma de fazer isso, mas devemos fazê-lo, se é para a Terra ter alguma chance de sobreviver.”

    “A grama e os herbívoros precisam um do outro tanto como predadores de suas presas. Essas não são relações de sentido único, e não acordos de dominação e subordinação. Nós não estamos explorando um ao outro por comer. Estamos apenas nos revezando.”

    -O que consideramos como sofrimento e como benefício também depende de construção social, não é algo dado nem diretamente observável. Para além do sofrimento e do benefício existe o sentido ou o significado. O sofrimento pode ter um significado que o coloca acima de um benefício relativo. Esse significado tem tanto valor para a consideração ética quanto o prazer e a dor. A caça, como a religião, não precisa ser justificada. Ela está inserida numa rede de significados que foi construída por meio de processos históricos, materiais e experienciais e não pode simplesmente ser taxada de “inadequada”. Pode ser inadequada para aqueles que desconstruíram seu significado, mas essa desconstrução não é em si um imperativo moral, a menos que você apresente um fundamento ético para isso. Seu fundamento ético parece ser o utilitarismo, que é somente uma perspectiva ética, não representa a ética como um todo.

    Seria preciso explicar porque o significado para o agressor é mais importante que o sofrimento/interesse/preferência/direito/significado/sentido… da vítima. Se a caça tem um significado positivo para o caçador, pode ter um significado negativo para um grande número de vítimas afetas direta ou indiretamente. Existem rituais que podem ser considerados sexistas ou racistas. Eles poderiam ser justificados ou aceitos porque foram construídos por processos históricos, materiais e experienciais? O canibalismo deve ser aceito e promovido porque poderia ter “um significado”. Estes rituais podem ser considerados inaceitáveis por uma variedade de teorias éticas, assim como as práticas que prejudicam animais. E reitero que a consideração moral plena aos seres sencientes também é algo compatível com todas as teorias éticas mais amplamente aceitas.

    -A prática da caça não pode ser comparada à prática do estupro só pelo sofrimento causado, do mesmo modo que o estupro não pode ser comparada ao ato de nascer só por causa das dores do parto. O que deve ser levado em consideração é qual o lugar de tal ação na história desses seres, como ela surgiu e qual o significado dessa ação. Não é preciso ser um utilitarista para concluir que o estupro é errado, embora classificar uma ação como errada não seja o mesmo que eliminá-la por completo da existência. Em todas as culturas existe a crença de que prejudicar o outro somente pelo seu próprio prazer é uma coisa condenável. A caça, porém, não é considerada como um sofrimento que tem como única motivação o prazer de que o pratica. Se você não compreende a predação como uma cooperação complexa entre duas ou mais espécies, então eu realmente não sei o que te dizer. Lendo os textos que você indica, eu não vejo nenhum motivo racional para pensar na predação como algo diferente disso.

    O fato de uma crença existir em outras culturas é irrelevante, pois muitos formas de discriminação aparecem explicitamente em várias culturas. Prejudicar o outro não é condenável só quando feito por prazer e é desnecessário citar exemplos disso. Quando coisas como a caça ou o canibalismo prejudicam humanos de qualquer forma, elas são prontamente condenadas, o problema é tratar isso sem imparcialidade, com uma discriminação (especismo) que favorece humanos, ou entidades valorizadas e veneradas por humanos, como espécies, ecossistemas. E isso está de acordo com todas as teorias éticas mais amplamente aceitas, não só o utilitarismo. O valor intrínseco de entidades como espécies tem sido altamente questionado. E mesmo que tenham um valor instrumental, não existe motivo para acreditar que este deve prevalecer sobre os interesses dos indivíduos. Isso fica óbvio quando humanos evitam a predação por outros animais quando eles mesmo são as vítimas. Eles não estão nem aí para espécies e a suposta cooperação complexa por trás. Mas é dado um tratamento diferenciado a outros seres sencientes. Uma análise mais completa de argumentos que envolvem a predação pode ser encontrada neste texto: http://www.pensataanimal.net/arquivos-da-pensata/145-steve-f-sapontzis/358-salvando-o-coelho-da-raposa-1

    -E não vendo os seres humanos como seres separados da natureza, me parece razoável que eles também participem dessa forma de organização.

    Ver novamente a descrição sobre a falácia de apelo à natureza. Note também que a distinção entre artificial e natural de fato é muitas vezes arbitrária, e muitas coisas artificiais ou antrópicas podem ser interpretadas como naturais.

    -Se eu fosse capaz de perceber a predação como algo necessariamente negativo ou prejudicial pelo simples fato de ela envolve a morte de indivíduos, e ainda assim eu justificasse minha ação de comer carne com base no fato de que isso existe na natureza, aí sim seria apelo à natureza. Assim como seria um apelo à autoridade se eu dissesse que a predação é ruim porque Stuart Mill afirma que o sofrimento é intrinsecamente ruim. Partir da ideia de que a predação não é necessariamente ruim não significa justifica a ação de deixar de socorrer uma vítima, por exemplo. Do ponto de vista deontológico, isso pode ser feito pela percepção de um dever ético. A reflexão ética, porém, pode revelar que se opor radicalmente à predação é equivalente a se opor à própria existência da morte, à própria finitude do ser, que é um fato da natureza e está fora do alcance de qualquer consideração ética.

    Ver o item acima… Os fatos da natureza são somente descritivos, é algo arbitrário tentar extrair algo normativo deles. É evidente que humanos evitam seus predadores, mesmo que saibam da existência da morte. Por que tratar outros animais de forma diferente?

    -Se sua crítica à consideração ética em relação a espécies se limita ao fato de que ela não é aplicada corretamente, isto é, é especista pois não se aplica a humanos, ou não se aplica a todos as espécies e somente às que consideramos mais belas ou valorosas, então não é uma crítica dirigida à autora, e sim a perspectivas conservacionistas, por exemplo, e não vejo como isso se relaciona com o texto, pois a autora se opõe diretamente ao conservacionismo e vertentes ambientalistas afins. Concordo plenamente que intervenções ecologistas pró-biodiversidade podem e com frequência são prejudiciais. Mas não podemos concluir que a falha se resuma a não adotar uma perspectiva individualista. Além disso, a autora não defende intervenções desse tipo, então, novamente, sua crítica não aplica.

    A crítica não se refere ao fato de a consideração moral por espécies não ser aplicada coerentemente (isso é apenas uma forma de mostrar como ela é absurda). Como dito, o problema é dar valor a entidades abstratas e não a indivíduos. Ver os trechos citados da autora acima. Um exemplo típico de como essa posição é perigosa é o escritor Pentti Linkola, que defende a preservação da natureza (espécies, ecossistemas, etc.) mesmo quando isso implica matar humanos, deficientes, impedir migrações e parar as tecnologais, por exemplo. Diferente das demais posturas ambientalistas, a postura dele aparentemente não é especista e é a aplicação coerente das principais formas de ambientalismo, mas por outro lado mostra como a consideração por espécies em vez (ou acima de) indivíduos é algo totalitário e nocivo. Outra forma forma de ilustrar isso é fazer uma comparação com pessoas totalitárias que veneram a “Pátria”, o “Estado”, a “Ordem”, ou mesmo alguma raça, sem se preocupar com como diversas pessoas podem ser prejudicadas para o “bem maior”. Ainda outra coisa a ser notada é a semelhança da defesa da caça e outras práticas naturais com as ideias liberalistas como o apelo à “lei do mais forme” e o Laissez-faire.

    -mas podemos estar somente incorrendo em etnocentrismo, que é considerar como válidas somente as considerações éticas de uma dada cultura, que geralmente é considerada mais “avançada” e “evoluída”, o que justificou a colonização, por exemplo. Se o utilitarismo é uma teoria tipicamente ocidental, se ela não pode ser considerada uma verdade universal, então tratar a caça como algo errado ainda seria considerar apenas o “para eles”, no caso, o ponto de vista da cultura que defende tal visão de mundo utilitarista. Não é suficiente incluir todas as espécies no seu conceito de sofrimento se esse conceito, em si, é etnocêntrico. Outros povos não consideram a dor e a morte como intrinsecamente ruim (e muitos nem sequer compreendem o fim do as atividade corporal como morte, e sim como transformação. O povo do cervo, por exemplo, acredita que o cervo morto pelo caçador se transforma em humano por meio desse ato, como nós acreditamos que a lagarta não morre para dar lugar à borboleta, mas se transforma), e a não ser que tenhamos uma base para demonstrar que estão fundamentalmente equivocadas quanto a isso, não podemos desconsiderar o significado da dor para eles. Mas, novamente, isso seria uma questão metafísica, e não ética. Seria uma questão sobre quem tem a concepção mais correta da realidade da vida e da morte, da própria existência, e isso não é algo tão simples assim.

    A aversão a experiências negativas não é exclusiva a culturas ocidentais. Embora o que importa seja o conteúdo das ideias, e não quem as defende, sabe-se que culturas orientais, como o jainismo e o budismo, e diversas teorias que não o utilitarismo também levam isso a sério de alguma forma. A desconstrução do geocentrismo é algo que foi desenvolvido pela cultura ocidental, mas seria absurdo usar deste fato para defender o geocentrismo e afirmar que o oposto seria etnocentrista. Mas, repetindo, o que importa são as evidências a favor desse fato, e não se certas culturas estão ou não de acordo.

    Aplicando o que você diz, então não haveria problema em matar pessoas (ou deixar morrerem) em massa, porque a morte é apenas uma “transformação”, ou porque isso teria algum significado para o assassino. Também poderíamos abandonar crianças para morrerem porque seu sofrimento e morte também seriam só uma transformação.

    -Já sua posição de pretender se opor a todo e qualquer tipo de sofrimento, mesmo aquele que claramente ocorre por processos naturais, também pode ser problematizado. O que leva um ser humano a pensar que, diferente de qualquer outro ser, ele pode e deve se revoltar e se opor ao funcionamento da própria natureza que o criou? Eu pessoalmente não consigo ver nenhuma outra razão para isso senão uma soberba e uma arrogância e, sim, um especismo enorme. A própria ideia de que seres humanos estão equipados com aparelhos cognitivos capazes de julgar moralmente não somente as próprias ações, mas as ações de todos os seres, independente do contexto, inclusive de fenômenos da natureza, é por si só uma afirmação que me parece contradizer a concepção biológica da evolução. Se a evolução é verdadeira, nossos cérebros foram selecionados para lidar com questões específicas à nossa sobrevivência, e não para determinar o que deve existir ou deixar de existir na natureza.

    Ver, novamente, sobre petição de princípio e apelo à natureza. Seu argumento lembra o de pessoas conservadoras que acham inaceitável alguém jovem questionar o pai que a criou… Se seres humanos são limitados cognitivamente, imagina então os processos cegos e aleatórios que governam a vida no planeta e as entidades imaginárias que alguns acreditam que estão por trás e devem ser louvadas. A evolução leva a adaptações para maximizar a transmissão de informações genéticas, não para maximizar a sobrevivência, o bem-estar ou os interesses dos indivíduos. Ver, por exemplo, a dinâmica de populações dos animais que seguem a chamada seleção-r.

    -Mas o contrário também não me parece justificável, ou seja, que colonizar, impedir os povos caçadores de realizarem suas práticas, e espalhar os valores e as crenças da civilização ocidental (e especificamente do utilitarismo) seria justificável porque “matar é errado”.

    Essa não é a melhor estratégia a ser tomada e atacar o especismo e ajudar os animais por outras formas seria mais eficaz e traria mais benefícios. De fato, existem outras atividades que afetam os seres sencientes em maior número e com maior intensidade que as práticas desses povos. Por exemplo, ao todo são mortos trilhões de peixes anualmente. Mas isso não significa aceitar tradições dogmaticamente sem questionar. Como dito, as vítimas mostram evidências de que serem caçadas não é do seu interesse. Por outro lado, não há nenhuma evidência de que queiram participar de algum ritual. Qualquer frustração que poderia existir com a ausência da caça seria menor que a atual frustração das vítimas.

    -Nós queremos considerar a vida dos animais como tão valorosa quanto a nossa, queremos considerá-los como iguais e não como inferiores. E nenhuma cultura fez isso tão bem quanto esses mesmos povos que praticam a caça, por mais que isso pareça contraditório. Quando falamos do ponto de vista mais amplo, queremos dizer que, embora não sejam anjos e não tenham eliminado todo e qualquer sofrimento do mundo, embora matem e comam animais como nós, não os destroem e não os matam como nós. A fazermos isso industrialmente nós transformamos animais e pessoas em coisas a serem exploradas.

    Se essa “igualdade” fosse obtida através da caça, seria apenas um nivelamento por baixo. Humanos e outros seres sencientes não desejam ser caçados, o que mostra o especismo de defensores da caça, que geralmente não defendem a matança de humanos inocentes. O fato de a sociedade ocidental ser especista não quer dizer que a solução esteja numa volta ao passado, embora a comparação que você faz tenha um fundo de verdade. É muito fácil pensar em várias outras alternativas que não envolvam o especismo.

    -A caça no seu sentido original, porém, é um ritual sagrado coerente com um sistema ético, com valores e crenças que envolvem justiça, compaixão e respeito à vida. Nenhum ato de estupro ou outro tipo de opressão pode ser incluído coerentemente em qualquer desses sistemas. Isso diferencia categoricamente uma coisa da outra, e qualquer aproximação que você tente fazer dessas coisas é como acidental, não pode ser considerada como determinante para dizer que ambas as coisas são igualmente condenáveis.

    E o canibalismo? Novamente, então está tudo bem em rituais que causem sofrimento e morte para humanos, se estiverem ligado a crenças que (supostamente) envolvem justiça, compaixão e respeito à vida?

    Curtir

  4. Olá,
    Muito obrigado novamente pela resposta detalhada, atenciosa e organizada ponto a ponto, isso facilita bastante a conversa.
    Vou começar pelas repetidas acusações de apelo à natureza. Creio que está faltando rigorosidade conceitual para identificar e apontar falácias. A falácia de apelo à natureza é um tipo especial de falácia de origem, na qual a pessoa evita o argumento e justifica sua posição apelando somente para a origem do argumento ou do que está sendo debatido, e tal origem é irrelevante para o argumento. Nesse ponto ela é bem semelhante à falácia ad hominem. Demonstrar uma falácia desse tipo é bem simples, basta demonstrar que nem tudo que vem de tal origem justificaria o argumento. Por isso, usar uma falácia desse tipo é também demonstração de pobreza argumentativa. Cabe ressaltar, porém, que algumas vezes a origem é relevante para a argumentação, e nesse caso dispensar a argumentação com uma acusação de falácia seria realmente evitar o argumento.
    Como eu espero poder demonstrar, a origem nesse caso faz toda diferença, e por isso a distinção entre natureza e cultura aqui não é irrelevante, pelo contrário, é um ponto central de nossa discordância, como você mesmo sugere na sua resposta (“Note também que a distinção entre artificial e natural de fato é muitas vezes arbitrária, e muitas coisas artificiais ou antrópicas podem ser interpretadas como naturais.”). E eu concordo plenamente que a distinção entre natureza e cultura não é nem um pouco simples. Mas interpreto que sua acusação de falácia resulta da minha dificuldade de expressar claramente minha posição, já que ela também não é nem um pouco simples. Algumas das suas afirmações parecem sustentar essa hipótese. Por exemplo:
    “Aplicando o que você diz, então não haveria problema em matar pessoas (ou deixar morrerem) em massa, porque a morte é apenas uma “transformação”, ou porque isso teria algum significado para o assassino. Também poderíamos abandonar crianças para morrerem porque seu sofrimento e morte também seriam só uma transformação”.
    Dizer que não há problema em matar pessoas seria uma posição bastante extremista. Se você interpreta que minha posição é essa, então realmente estamos tendo algum problema de comunicação. Minha posição provavelmente está num ponto entre os dois extremos apresentados por você. Em alguns pontos, sinto que você reduz toda questão a uma falsa bifurcação: ou consideramos todo e qualquer sofrimento como necessariamente prejudicial e assumimos o dever ético de evitá-lo, ou acabaremos aceitando concepções éticas inviáveis ou prejudiciais.
    Acho que entendi muito melhor sua concepção ética agora, mas isso não muda o centro da nossa discordância. A concepção consequencialista e a consideração da distribuição de utilidade pode ser um grande avanço em relação ao simples utilitarismo. Mas do meu ponto de vista isso só muda alguns detalhes, o erro fundamental permanece. Eu poderia também dizer que sua ideia tem sido refutada há bastante tempo. A maior parte dos autores com quem me identifico critica a concepção consequencialista por completo. Sendo assim teremos um longo caminho se quisermos debater esse assunto.
    Um dos problemas que sua concepção teria que lidar é a ideia de respeito às crenças religiosas. E aqui eu penso que seu problema não é exatamente com a religião, mas com algo que é próprio da religião, que é atribuir um significado transcendente a coisas imanentes, o que significa transcender o simples cálculo de utilidade. Isso não quer dizer que o ato de matar estaria justificado por ter um significado religioso, mas que o significado religioso não pode ser considerado irrelevante, como se só a utilidade contasse. Quando eu cito outras culturas ou outros processos observáveis na natureza, a lógica é a mesma. Não estou justificando algo por estar presente nessas realidades, mas tentando apontar para a relevância do fenômeno.
    Sua concepção me parece muitas vezes evitar esse problema se limitando a considerar apenas fatores bastante restritos, e descartando todos os outros como se fossem irrelevantes. Logicamente eles só são irrelevantes se você já parte de uma concepção de mundo que considera apenas a “utilidade” (ou algo do tipo) como relevante. Mas não há nenhum motivo para partir de tal concepção.
    Nesse ponto, a origem faz toda diferença. Trata-se de questionar premissas. Você afirmou que “não há porque respeitar religiosamente as criações da natureza”. Para você não há, porque você julga já estar considerando tudo que precisa ser considerado. Mas a não ser que tenha um critério para invalidar as concepções religiosas como um todo, sua afirmação fica comprometida.
    Do que você expôs, nós concordamos que o sofrimento existe e é observável não apenas em nós como em outros seres. Mas dizer que o sofrimento é evitado porque é prejudicial ou porque as criaturas capazes de senti-lo demonstram o interesse de evitá-lo seria tautológico. O comportamento que identificamos como indicador de um estado subjetivo de “sofrimento” é, por definição, um comportamento fóbico, e o comportamento fóbico é por definição uma reação de fuga ou repugnância a algo que o organismo identifica como prejudicial ou potencialmente prejudicial. Nós sabemos que algo causa sofrimento PORQUE aquilo é evitado de algum modo. Nós atribuímos a palavra “sofrimento” àquilo que é identificado como prejuízo de algum tipo. Mas da simples existência do sofrimento (do simples fato de que os organismos estão predispostos a evitar algo que identificam como prejudicial) não podemos concluir que tudo aquilo que causa sofrimento deve ser moralmente condenado, assim como não podemos concluir que tudo que produz prazer deve moralmente ser buscado.
    Assim como a existência do sofrimento me parece ser evidente, a existência de relações entre os seres vivos (troca de matéria e energia) também me parece evidente. Essas relações pensadas em conjunto são mais bem compreendidas quando organizadas segundo a teoria dos sistemas. A rede de relações pode assim ser pensada como um todo, mesmo sendo a composição de inúmeras partes em constante mudança interna e externa. Essas mudanças ocorrem ao acaso, sem nenhum direcionamento pré-estabelecido, e podem ser observadas em diferentes perspectivas. Não há distinção ontológica entre “vários seres” e “o conjunto formado por esses mesmos seres”, trata-se exatamente da mesma coisa observada de modos diferentes. Embora essa rede de relações seja maleável o bastante para suportar um grau considerável de mudanças bruscas, existe um limite de absorção de danos estruturais, ou limite de sustentação, tal como ocorre em qualquer outra estrutura física. Qualquer variação aleatória produz padrões. Os padrões de um sistema são como pilastras de um prédio. O dano a uma pilastra é significativamente mais prejudicial à estrutura de um prédio do que o dano a uma parede.
    Para resumir uma longa história, o sofrimento e a morte de indivíduos podem sim fazer sentido (não apenas para a sobrevivência, o bem-estar ou o interesse da espécie, mas para o interesse desses mesmos indivíduos), e considerar o prejuízo somente do ponto de vista dos indivíduos (considerar a parte sem considerar o todo) é um erro metodológico, mesmo do ponto de vista consequencialista. Você disse que , segundo minha visão “as pessoas que se esforçaram para desenvolver tratamentos para doenças e prevenção de desastres naturais para evitar o sofrimento estariam erradas, porque não existem coisas intrinsecamente boas ou más”. O que estou afirmando não é isso, mas que algo não é necessariamente benéfico só porque evita algum sofrimento. E nós concordamos que, se algo é para ser considerado benéfico, deve levar em consideração a vida de todos os indivíduos de todas as espécies, sem distinção.
    Você repete ao longo da sua resposta que “não existe motivo para acreditar que este (o interesse das espécies) deve prevalecer sobre os interesses dos indivíduos”. Uma espécie é um sistema, como você mesmo afirmou, é algo abstrato como qualquer conjunto, é apenas um modo de organizar a experiência. Quando afirmamos que espécies possuem interesses, não estamos afirmando algo diferente disso: um conjunto de indivíduos da mesma espécie possui interesses em comum que tem relação direta com o fato de pertencerem à mesma espécie. A classificação das espécies é feita pela identificação de características físicas comuns. A rigor, a taxonomia é um exercício de abstração. Nem sequer é possível, desse ponto de vista, colocar o interesse de uma espécie acima do interesse dos indivíduos que compõem aquela espécie, pois uma coisa é idêntica à outra. Do mesmo modo, não é possível que o interesse dos indivíduos prevaleça sobre o interesse da espécie. O que se trata é considerar como uma ação afeta indivíduos no contexto da rede de relações na qual estão inseridos, e não isoladamente desta.
    Assim, quando eu falo sobre o significado da caça, não se trata de explicar a prevalência do significado que o agressor atribui em relação ao significado que a vítima atribui. Obviamente que no nível individual a morte da presa será considerada um sucesso para o predador (representará algo positivo) e um fracasso para a presa (representará algo negativo), assim como a sobrevivência da presa será um fracasso para o predador, que poderá morrer de fome, e um sucesso para a presa. Mas o que a predação como um todo, o conjunto de atos de predação de uma espécie sobre a outra, representa no contexto da rede de relações entre essas espécies? Um exemplo simples: A ilha de São Mateus: http://interrogacao.com.br/2012/07/ilha-de-sao-mateus/
    Se você simplesmente separa os predadores de suas presas, o que acontece não é uma vida melhor para os indivíduos, o resultado é a morte. A relação de predação não é exatamente competitiva, destruidora, agressiva ou prejudicial. Essa relação foi selecionada de modo tão adaptativo que se tornou um padrão. O significado atribuído à caça por povos caçadores ancestrais simplesmente reconhece esse padrão. Ele reconhece que a continuação da vida depende da morte, e que a morte produz a continuação da vida. Isso de modo algum justifica que nós cacemos ou comamos carne. Não porque caçar ou comer carne não seja natural, mas porque as condições em que vivemos já não são as mesmas, e não justificam que matemos animais pelo mesmo motivo se não vivemos dentro do mesmo ciclo de vida e morte que nossos antepassados. A agricultura e a domesticação nos retiraram do ciclo de fartura e fome a que todas as espécies estão sujeitas. Seria sim falta de coerência ética justificar nossa caça pelo significado atribuído por um povo caçador ancestral. Mas não pelos motivos que você citou, não porque a caça seja em si errada, e sim porque nós não somos mais selvagens. Não quer dizer que sejamos mais avançados, melhores ou superiores. Por isso não é válido afirmar que a caça ou a predação são condenáveis por serem desnecessárias. Não são desnecessárias para ninguém além de nós mesmos, e não podemos torná-las desnecessárias para outros, mesmo para outros humanos capazes de compreender a questão ética do veganismo e de viver sem carne. O mesmo não ocorre com outros exemplos com os quais você comparou. Enquanto a predação resulta em benefícios para ambos os lados, comportamentos culturais como o canibalismo, o estupro ou a mutilação não resultam. Essas coisas pertencem a dois tipos completamente distintos de ação.
    “Existem rituais que podem ser considerados sexistas ou racistas. Eles poderiam ser justificados ou aceitos porque foram construídos por processos históricos, materiais e experienciais?”
    Primeiro, acredito que toda ação social é construída por processos sociais, e os rituais religiosos são ações sociais. Isso não os exime de consideração ética, mas essa consideração não se restringe ao critério de utilidade. O sexismo e o racismo são culturas, não são características intrínsecas da mente humana ou do comportamento social humano. Algo que antecede o sexismo não pode ser considerado sexista. O que podemos fazer é uma analogia. Podemos repudiar a ação de um indivíduo que, numa cultura que não sofreu nenhuma influência de uma cultura sexista, age de modo que chamaríamos de sexista. Mas se o que estamos observando é um ritual que faz parte daquela cultura e não é reflexo de uma cultura sexista, mas de um modo de vida que nos é estranho, não podemos dizer que aquele ritual é sexista. É claro que praticamente inexistem culturas isoladas hoje em dia. O sexismo e outras coisas do tipo que observamos hoje em culturas ancestrais são na verdade herança do contato que elas tiveram com nossa cultura. Em outras palavras, é o nosso próprio sexismo e nosso próprio racismo que estamos criticando nelas, quase sempre de modo hipócrita.
    Um ponto central da nossa discussão é que, como você afirmou, “Os fatos da natureza são somente descritivos, é algo arbitrário tentar extrair algo normativo deles”. Concordamos quanto a isso. O problema é que: é exatamente isso que qualquer concepção moral realiza: ela extrai algo normativo a partir de fatos descritivos, porque simplesmente não há outra origem possível. A normatividade é uma abstração, é uma realização da mente humana, pertence ao reino das ideias, mas a não ser que você defenda uma dicotomia entre mente e corpo, tudo que existe em nossa mente, incluindo nossas regras normativas, é resultado de operações realizadas pelo nosso cérebro, que é feito de matéria, que se estrutura segundo leis físicas, e que não pode criar, acessar ou processar nada além de representações da “natureza”. Todas as nossas experiências sensíveis são experiências com “fatos da natureza”. Não há um mundo das ideias com ideais normativos perfeitos e imutáveis de onde podemos extrair nossos ideais normativos. Em última instância, os critérios normativos são formados a partir da nossa observação da natureza. Você afirma que uma ação não pode ser justificada por um equivalente na natureza. Eu afirmo que toda justificação é na verdade derivada de alguma equivalência na natureza. Suas afirmações também são baseadas no que ocorre na natureza. A questão é como observamos a natureza.
    “É evidente que humanos evitam seus predadores. Por que tratar outros animais de forma diferente?”. Mas nós não tratamos os animais como se eles não evitassem predadores. Do fato que humanos evitam predadores não podemos concluir que humanos não devem ser predados, ou que a predação de humanos é moralmente condenável. A ausência de predação pode ser prejudicial, mas não a presença. Indivíduos evitam ser predados porque evitam ser morrer, o que não significa que a morte seja imoral ou prejudicial, pelo contrário, tudo que é vivo precisa morrer. Evitamos o que pode nos matar não para que a vida seja eterna, mas para que a morte não seja precoce.
    O que eu afirmei não é que não deve ser dado nenhum valor aos indivíduos, mas que também deve ser dado valor às relações formadas entre os indivíduos. Esse valor não é superior ao valor dos indivíduos, uma vez que a relação depende dos indivíduos. Considere uma situação em que um indivíduo se sacrifica pela sobrevivência do grupo, por exemplo. Visto superficialmente, parece que o conflito é entre o interesse do grupo e o interesse do indivíduo, mas isso é somente aparente. O interesse do indivíduo na própria sobrevivência é exatamente o mesmo interesse presente em todos os outros, e juntos esses interesses formam o interesse na sobrevivência do grupo. Um indivíduo não se entrega voluntariamente a um sacrifício porque seu interesse em sobreviver é menor que o interesse na sobrevivência do grupo. O altruísmo não desvaloriza os indivíduos. É considerar o valor de um conjunto de indivíduos, incluindo você mesmo, de acordo com suas relações com esses indivíduos. O suicídio altruísta, por exemplo, depende de uma compreensão desses valores. Sem processos do tipo altruísta, onde o sofrimento de um indivíduo é preferível em vista da manutenção da vida de outros, a vida seria impossível. Isso não justifica todo e qualquer sacrifício, mas indica que o critério deve ser outro que não o simples interesse individual de não sofrer.
    Não vejo muito sentido em rejeitar uma perspectiva ética só porque ela depende da valorização de “entidades abstratas”. A distinção entre abstrato e concreto pode ser problemática nesse caso. Por que você diz que sistemas são abstratos e indivíduos são concretos? Poderíamos nos ver como um conjunto de células unidas fisicamente ou um conjunto de corpos unidos por necessidades materiais e emocionais, e o fato de que damos prioridade ao conceito de “indivíduo” e ao ponto de vista individual é circunstancial.
    Finalmente, embora matar uma pessoa seja um ato moral, morrer não é necessariamente algo moralmente imputável a algum agente, mesmo que toda morte tenha uma causa, e mesmo que essa causa envolva a ação de agentes. Se por um lado não podemos justificar uma ação pela simples obediência a uma autoridade superior (da natureza, dos deuses, dos costumes), também não podemos comparar o ato de matar com o ato de não impedir uma morte que PODERIA ser evitada. Em tese, com suficiente avanço da tecnologia, PODERÍAMOS evitar qualquer morte ou sofrimento. Mas disso não podemos concluir que é isso que DEVERÍAMOS fazer, simplesmente porque está ao nosso alcance. Para isso seria necessário primeiro demonstrar que toda morte e todo sofrimento DEVE ser evitado. O que você ofereceu é simplesmente o fato de que todo ser EVITA a morte e o sofrimento. Isso é descritivo. Há um salto muito grande de uma coisa para outra, como você mesmo indica com seu raciocínio. A morte e o sofrimento são fatos naturais. Não podemos dizer se são bons ou são ruins, o que podemos dizer é que existem. Tudo que é vivo busca preservar sua própria vida, e tudo que é vivo morre. O processo de autopreservação é apenas um dos processos biológicos existentes. Ele funciona sempre em conjunto com outros processos, que levam à autodestruição ou à destruição de outros. Eles são mutuamente dependentes. Dar a um o peso de dever e a outro não é ser seletivo.
    Dito isso, há uma diferença muito grande em “deixar crianças para morrerem” e não impedir um processo biológico como a predação. Quando você faz essas comparações, não está levando em conta o que realmente faz diferença: nosso papel moral. Não é uma questão de especismo. Não creio que seja por simples incoerência ética que a maioria dos teóricos considere a distinção entre assassinato e predação. As razões são muito claras se você considera a distinção entre natureza e cultura. Sua concepção, porém, trabalha na contramão dessa distinção. Seu opositor é sua imagem no espelho, aquele que considera somente um lado, mas você também só considera o outro lado. São dois extremos de um mesmo erro.
    Se os processos cegos e aleatórios que governam a vida no planeta são limitados cognitivamente, imagine os seres humanos, que são nada mais que um dos resultados desses processos… Faria muito mais sentido pensar assim que o contrário. Você afirma logo em seguida que “A evolução leva a adaptações para maximizar a transmissão de informações genéticas, não para maximizar a sobrevivência, o bem-estar ou os interesses dos indivíduos”. Eu diria que a evolução não maximiza coisa alguma, ela não possui tendências, não é teleológica. O que observamos nela são apenas padrões emergentes formados pela variação aleatória. Mas se isso para você justifica a superioridade das considerações morais (que são produtos da mente humana) como superiores aos processos biológicos que, por exemplo, estruturam o cérebro humano, então tem algo muito errado.
    Espero ter demonstrado que pelo menos em relação à predação como ela normalmente ocorreria na natureza (animais selvagens comendo outros animais selvagens, sem nenhuma interferência da civilização), não cabe qualquer consideração ética. A justificação moral para a caça enquanto atividade humana ancestral (realizada por culturas sem qualquer contato com a civilização) se dá no mesmo sentido. Poderia ser argumentado que a caça, mesmo nessas culturas ancestrais, é resultado de desenvolvimentos culturais prejudiciais e moralmente condenáveis, e não do simples ato de predação, por exemplo. Um dos principais autores primitivistas, John Zerzan, defende isso (embora não seja vegano). Ele afirma que a caça se relaciona diretamente à divisão de trabalho, ao sexismo e à domesticação, sendo uma atividade protocivizatória, e por isso é condenável. Mesmo condenando a caça, porém, o consumo eventual de carne continuaria existindo e poderia ser moralmente condenável, mas não a ponto de justificar medidas drásticas para sua completa erradicação. Este autor também deixa claro que criticar a civilização não significa “voltar ao passado”. O modo de vida não civilizado não está no passado da humanidade, como se fosse uma fase pela qual já passamos, porque a história humana não é composta de estágios linearmente ordenados. O fato de que esta cultura (a cultura civilizada, sedentária, domesticadora…) se espalhou pelo globo não quer dizer que ela seja “mais avançada” que qualquer outra que ela destruiu no caminho, significa apenas que se expandiu mais, o que não é se de admirar se você considerar que é a única cultura expansionista (que pratica guerras de conquista de territórios, mesmo porque é a única que possui o conceito de “território” enquanto propriedade).
    Pelo seu raciocínio, o único modo de justificar não apenas a caça, mas a predação em geral, seria se considerássemos atos equivalentes de violência contra humanos como moralmente aceitáveis. O ponto é que não há equivalência real entre esses atos, dado a distinção entre natureza e cultura. Uma coisa cabe à consideração moral, independente de afetar humanos ou outros seres, a outra simplesmente não, independente de afetar humanos ou outros seres. Logo, a questão não é o especismo.

    Curtir

  5. Olá! Obrigado pela resposta.

    Peço desculpa pela demora. Por falta de tempo, tive que dar respostas resumidas ao seu comentário.

    -“Aplicando o que você diz, então não haveria problema em matar pessoas (ou deixar morrerem) em massa, porque a morte é apenas uma “transformação”, ou porque isso teria algum significado para o assassino. Também poderíamos abandonar crianças para morrerem porque seu sofrimento e morte também seriam só uma transformação”.
    Dizer que não há problema em matar pessoas seria uma posição bastante extremista. Se você interpreta que minha posição é essa, então realmente estamos tendo algum problema de comunicação. Minha posição provavelmente está num ponto entre os dois extremos apresentados por você. Em alguns pontos, sinto que você reduz toda questão a uma falsa bifurcação: ou consideramos todo e qualquer sofrimento como necessariamente prejudicial e assumimos o dever ético de evitá-lo, ou acabaremos aceitando concepções éticas inviáveis ou prejudiciais.

    Pois essa seria a única forma coerente e de defender essa posição. Como já falei na conversa e vou detalhar mais adiante, críticas à civilização que proponham substitui-la por uma reaproximação dos seres humanos com o estado selvagem, para não serem especistas, deveriam aceitar a predação, doenças, parasitismo, coerção sexual e outros processos naturais (que incluiriam obviamente matar pessoas) quando também afetam humanos. Qualquer “caminho do meio” que negue matar pessoas mas promova danos a animais não humanos estará discriminando estes. Se você defende que humanos tomem parte na parte mais conveniente, dominante e ilusoriamente idílica da natureza, por que não participar do resto? É claro, por outro lado não é preciso concordar com tudo o que há na civilização. É possível criticá-la de outras formas.

    -Acho que entendi muito melhor sua concepção ética agora, mas isso não muda o centro da nossa discordância. A concepção consequencialista e a consideração da distribuição de utilidade pode ser um grande avanço em relação ao simples utilitarismo. Mas do meu ponto de vista isso só muda alguns detalhes, o erro fundamental permanece. Eu poderia também dizer que sua ideia tem sido refutada há bastante tempo. A maior parte dos autores com quem me identifico critica a concepção consequencialista por completo.

    Poderia citar resumidamente essas refutações? Se os autores criticam o consequencialismo por completo, então ele não dão nenhuma importância para as consequências de nossas decisões, e não poderia haver uma posição mais niilista e irresponsável. O que faria sentido é defender que outros aspectos além das consequências também importam, e não que estas não importam nada, mas isso não seria criticar o consequencialismo por completo.

    -Um dos problemas que sua concepção teria que lidar é a ideia de respeito às crenças religiosas. E aqui eu penso que seu problema não é exatamente com a religião, mas com algo que é próprio da religião, que é atribuir um significado transcendente a coisas imanentes, o que significa transcender o simples cálculo de utilidade. Isso não quer dizer que o ato de matar estaria justificado por ter um significado religioso, mas que o significado religioso não pode ser considerado irrelevante, como se só a utilidade contasse. Quando eu cito outras culturas ou outros processos observáveis na natureza, a lógica é a mesma. Não estou justificando algo por estar presente nessas realidades, mas tentando apontar para a relevância do fenômeno.

    Como disse, é possível acreditar que outros aspectos além de sofrimento, como preferências, igualdade, etc. também tenham valor intrínseco, mas isso em nada afeta a conclusão antiespecista já que é improvável demostrar que algo possa contrabalançar os danos sofridos pelos animais, ou que estes danos sejam necessários para obter algo com determinado significado. Esse artigo trata disso também: http://www.ledonline.it/index.php/Relations/article/view/823

    -Nesse ponto, a origem faz toda diferença. Trata-se de questionar premissas. Você afirmou que “não há porque respeitar religiosamente as criações da natureza”. Para você não há, porque você julga já estar considerando tudo que precisa ser considerado. Mas a não ser que tenha um critério para invalidar as concepções religiosas como um todo, sua afirmação fica comprometida.

    Usando a mesma linha de raciocínio, alguém poderia defender que, a não ser que tenha um critério para invalidar concepções religiosas que promovem o estupro (tais concepções existem, e por outro lado o estupro e a coerção sexual também ocorrem na natureza, mesmo onde não existe presença humana), afirmar que o estupro é errado seria um equívoco. O estupro não pode ser considerado como bom a menos que seus defensores demonstrem fortes razões para isso, e não podemos considerá-lo bom porque pode haver alguma razão ou porque não foi provado que tal razão não existe. Então, o que precisaria ser demonstrado aqui é por que as criações da natureza devem ser respeitadas religiosamente, mesmo quando isso prejudicar outros. E mesmo que devessem ser (o que já seria bastante difícil de demosntrar), não significa que isso prevaleça sobre respeitar os seres sencientes.

    -Do que você expôs, nós concordamos que o sofrimento existe e é observável não apenas em nós como em outros seres. Mas dizer que o sofrimento é evitado porque é prejudicial ou porque as criaturas capazes de senti-lo demonstram o interesse de evitá-lo seria tautológico. O comportamento que identificamos como indicador de um estado subjetivo de “sofrimento” é, por definição, um comportamento fóbico, e o comportamento fóbico é por definição uma reação de fuga ou repugnância a algo que o organismo identifica como prejudicial ou potencialmente prejudicial. Nós sabemos que algo causa sofrimento PORQUE aquilo é evitado de algum modo. Nós atribuímos a palavra “sofrimento” àquilo que é identificado como prejuízo de algum tipo.

    É preciso diferenciar o comportamento de evitação (que pode envolver apenas uma resposta a estímulos) do sofrimento. Vou falar disso mais abaixo. É justamente porque o sofrimento é considerado por definição como algo prejudicial que se acredita que o sofrimento tem valor intrínseco negativo, mesmo quando traz indiretamente consequências positivas, embora isso não queira dizer que outras coisas não tenham também valor intrínseco.

    -Mas da simples existência do sofrimento (do simples fato de que os organismos estão predispostos a evitar algo que identificam como prejudicial) não podemos concluir que tudo aquilo que causa sofrimento deve ser moralmente condenado, assim como não podemos concluir que tudo que produz prazer deve moralmente ser buscado.

    Faz sentido dizer que às vezes o sofrimento tem valor instrumental positivo e que o prazer tem valor instrumental negativo, mas isso ocorre porque podem prejudicar ou beneficiar alguém indiretamente, e não porque o sofrimento não tem valor intrínseco. Por exemplo, o tratamento para alguma doença pode ser doloroso (causa sofrimento), mas salva a pessoa da doença e portanto aqui o sofrimento tem valor instrumental positivo.

    -Assim como a existência do sofrimento me parece ser evidente, a existência de relações entre os seres vivos (troca de matéria e energia) também me parece evidente. Essas relações pensadas em conjunto são mais bem compreendidas quando organizadas segundo a teoria dos sistemas. A rede de relações pode assim ser pensada como um todo, mesmo sendo a composição de inúmeras partes em constante mudança interna e externa. Essas mudanças ocorrem ao acaso, sem nenhum direcionamento pré-estabelecido, e podem ser observadas em diferentes perspectivas. Não há distinção ontológica entre “vários seres” e “o conjunto formado por esses mesmos seres”, trata-se exatamente da mesma coisa observada de modos diferentes.

    É por esse motivo que foram feitas antes as críticas dirigidas à ecologia profunda e ao holismo ético. Mesmo que não se identifique com essas teorias abertamente, existem semelhanças. As críticas são semelhantes às críticas a sistemas políticos totalitários, que afirmam que deve ser buscado o bem da nação, da pátria, ou da humanidade, mesmo que isso signifique prejudicar muitos indivíduos, como acontece em regimes fascistas, escravocratas ou colonialistas. Ver: https://dspace.usc.es/bitstream/10347/7392/1/29-43.pdf

    É possível afirmar que o todo também importa, mas na prática o que é mais comum é que as partes sejam negligenciadas. Isso fica claro observando tanto os regimes citados quanto a falta de consideração generalizada pelos animais não humanos.

    É fundamental considerar também a questão da senciência, que não ocorre em certos sistemas: http://www.animal-ethics.org/argumento-relevancia-pt/
    -considerar o prejuízo somente do ponto de vista dos indivíduos (considerar a parte sem considerar o todo) é um erro metodológico, mesmo do ponto de vista consequencialista.

    Como dito antes, é perfeitamente possível conciliar a consideração pelo sofrimento com outros aspectos :), porém, como ilustrado acima, a falta de consideração pelo sofrimento é um problema mais comum e mais urgente que a falta de consideração pelo todo, se este tiver mesmo valor intrínseco.

    -Quando afirmamos que espécies possuem interesses, não estamos afirmando algo diferente disso: um conjunto de indivíduos da mesma espécie possui interesses em comum que tem relação direta com o fato de pertencerem à mesma espécie. A classificação das espécies é feita pela identificação de características físicas comuns. A rigor, a taxonomia é um exercício de abstração. Nem sequer é possível, desse ponto de vista, colocar o interesse de uma espécie acima do interesse dos indivíduos que compõem aquela espécie, pois uma coisa é idêntica à outra. Do mesmo modo, não é possível que o interesse dos indivíduos prevaleça sobre o interesse da espécie. O que se trata é considerar como uma ação afeta indivíduos no contexto da rede de relações na qual estão inseridos, e não isoladamente desta.

    O texto citado da Cátia Faria e outras ideias que comentei, como os exemplos de intervenções que matam animais para proteger plantas (que não são sencientes) ameaçadas de extinção, ou porque esses animais são de espécies invasoras, demonstram que não é assim. A preocupação do ambientalismo com indivíduos é inversamente proporcional à sua população, porque o que têm valor intrínseco para eles são espécies, ecossistemas, etc. Indivíduos de espécies raras (mesmo que não sejam sencientes) são mais valorizados que os das demais. Esse tipo de critério é arbitrário e deve ser rejeitado.

    -o que a predação como um todo, o conjunto de atos de predação de uma espécie sobre a outra, representa no contexto da rede de relações entre essas espécies? Um exemplo simples: A ilha de São Mateus:http://interrogacao.com.br/2012/07/ilha-de-sao-mateus/

    Pessoalmente, eu não acho que um tipo de intervenção como esta, que teve objetivos antropocêntricos, seja interessante. Nesse exemplo, uma posição que analisasse todos os aspectos relevantes não se preocuparia somente com a fato das espécies de líquens, renas e predadores estarem presentes do local e com o fato de as espécies serem nativas ou não. Seria preciso saber, por exemplo, qual a qualidade de vida dos seres sencientes envolvidos em comparação a outros cenários possíveis, e também como resolver eficazmente problemas como a mortalidade das renas, quando estes problemas já existirem, independentemente da sua origem.

    -Se você simplesmente separa os predadores de suas presas, o que acontece não é uma vida melhor para os indivíduos, o resultado é a morte. A relação de predação não é exatamente competitiva, destruidora, agressiva ou prejudicial. Essa relação foi selecionada de modo tão adaptativo que se tornou um padrão. O significado atribuído à caça por povos caçadores ancestrais simplesmente reconhece esse padrão. Ele reconhece que a continuação da vida depende da morte, e que a morte produz a continuação da vida.

    Como um padrão resultante de processos aleatórios, ele não reconhece coisa alguma, apenas foi um tipo de adaptação que levou alguns seres a obterem sucesso. Nisso não há nada puro ou nobre para ser venerado. Se a morte produz a continuação da vida, isso não quer dizer que a morte não seja um dano.

    -Isso de modo algum justifica que nós cacemos ou comamos carne. Não porque caçar ou comer carne não seja natural, mas porque as condições em que vivemos já não são as mesmas, e não justificam que matemos animais pelo mesmo motivo se não vivemos dentro do mesmo ciclo de vida e morte que nossos antepassados. A agricultura e a domesticação nos retiraram do ciclo de fartura e fome a que todas as espécies estão sujeitas. Seria sim falta de coerência ética justificar nossa caça pelo significado atribuído por um povo caçador ancestral. Mas não pelos motivos que você citou, não porque a caça seja em si errada, e sim porque nós não somos mais selvagens. Não quer dizer que sejamos mais avançados, melhores ou superiores. Por isso não é válido afirmar que a caça ou a predação são condenáveis por serem desnecessárias. Não são desnecessárias para ninguém além de nós mesmos, e não podemos torná-las desnecessárias para outros, mesmo para outros humanos capazes de compreender a questão ética do veganismo e de viver sem carne. O mesmo não ocorre com outros exemplos com os quais você comparou. Enquanto a predação resulta em benefícios para ambos os lados, comportamentos culturais como o canibalismo, o estupro ou a mutilação não resultam. Essas coisas pertencem a dois tipos completamente distintos de ação.

    Como estou falando de indivíduos e não espécies, é falso que a predação resulte em benefícios para ambos os lados envolvidos. E, embora eu não seja um especialista, é bem provável que existam casos em que o canibalismo beneficie a espécie como pressão seletiva. Não vejo motivos para rejeitar a ideia de tornar algo desnecessário para alguém (todo o resto sendo igual), visto isso seria aceito no caso de uma sociedade que se sustentasse com base na opressão e no trabalho compulsório, por exemplo.

    -“Existem rituais que podem ser considerados sexistas ou racistas. Eles poderiam ser justificados ou aceitos porque foram construídos por processos históricos, materiais e experienciais?”
    Primeiro, acredito que toda ação social é construída por processos sociais, e os rituais religiosos são ações sociais. Isso não os exime de consideração ética, mas essa consideração não se restringe ao critério de utilidade. O sexismo e o racismo são culturas, não são características intrínsecas da mente humana ou do comportamento social humano. Algo que antecede o sexismo não pode ser considerado sexista. O que podemos fazer é uma analogia. Podemos repudiar a ação de um indivíduo que, numa cultura que não sofreu nenhuma influência de uma cultura sexista, age de modo que chamaríamos de sexista. Mas se o que estamos observando é um ritual que faz parte daquela cultura e não é reflexo de uma cultura sexista, mas de um modo de vida que nos é estranho, não podemos dizer que aquele ritual é sexista. É claro que praticamente inexistem culturas isoladas hoje em dia. O sexismo e outras coisas do tipo que observamos hoje em culturas ancestrais são na verdade herança do contato que elas tiveram com nossa cultura. Em outras palavras, é o nosso próprio sexismo e nosso próprio racismo que estamos criticando nelas, quase sempre de modo hipócrita.

    A coerção sexual existe inclusive entre muitos animais, por isso é muito provável que tenha ocorrido entre humanos sem qualquer influência de outras culturas.

    -Você afirma que uma ação não pode ser justificada por um equivalente na natureza. Eu afirmo que toda justificação é na verdade derivada de alguma equivalência na natureza. Suas afirmações também são baseadas no que ocorre na natureza. A questão é como observamos a natureza.

    Isso é uma questão de palavras que na verdade não muda em nada as coisas. A tentativa de evitar aquilo que prejudica alguém é baseada no justamente no fato de prejudicar alguém, o qual é inferido a partir de observações. Isso é diferente de supor que tudo o que é observado [na natureza] deve ser copiado, o que seria absurdo. Mas é exatamente isso que as diversas formas de apelo à natureza fazem.

    -Indivíduos evitam ser predados porque evitam ser morrer, o que não significa que a morte seja imoral ou prejudicial, pelo contrário, tudo que é vivo precisa morrer. Evitamos o que pode nos matar não para que a vida seja eterna, mas para que a morte não seja precoce.

    No caso de humanos a morte é sempre considerada prejudicial, exceto em casos raros como de eutanásia. Quase sempre tenta-se prolongar a vida na medida do possível, e morrer através da predação dificilmente é considerado uma forma desejável de morrer.

    -O que eu afirmei não é que não deve ser dado nenhum valor aos indivíduos, mas que também deve ser dado valor às relações formadas entre os indivíduos. Esse valor não é superior ao valor dos indivíduos, uma vez que a relação depende dos indivíduos. Considere uma situação em que um indivíduo se sacrifica pela sobrevivência do grupo, por exemplo. Visto superficialmente, parece que o conflito é entre o interesse do grupo e o interesse do indivíduo, mas isso é somente aparente. O interesse do indivíduo na própria sobrevivência é exatamente o mesmo interesse presente em todos os outros, e juntos esses interesses formam o interesse na sobrevivência do grupo. Um indivíduo não se entrega voluntariamente a um sacrifício porque seu interesse em sobreviver é menor que o interesse na sobrevivência do grupo. O altruísmo não desvaloriza os indivíduos. É considerar o valor de um conjunto de indivíduos, incluindo você mesmo, de acordo com suas relações com esses indivíduos. O suicídio altruísta, por exemplo, depende de uma compreensão desses valores. Sem processos do tipo altruísta, onde o sofrimento de um indivíduo é preferível em vista da manutenção da vida de outros, a vida seria impossível. Isso não justifica todo e qualquer sacrifício, mas indica que o critério deve ser outro que não o simples interesse individual de não sofrer.

    Sim, as relações devem ser levadas em conta. Por outro lado, muitas vezes o interesse do grupo poderia ser buscado sem prejudicar os indivíduos, ou minimizando os prejuízos a estes. Além disso, não se trata de suicídio altruísta no caso da caça/predação. A morte da presa não é voluntária, não é um suicídio.

    -Não vejo muito sentido em rejeitar uma perspectiva ética só porque ela depende da valorização de “entidades abstratas”. A distinção entre abstrato e concreto pode ser problemática nesse caso. Por que você diz que sistemas são abstratos e indivíduos são concretos? Poderíamos nos ver como um conjunto de células unidas fisicamente ou um conjunto de corpos unidos por necessidades materiais e emocionais, e o fato de que damos prioridade ao conceito de “indivíduo” e ao ponto de vista individual é circunstancial.

    Não haveria problema em considerar entidades abstratas se isso não prejudicasse indivíduos, como ocorre no caso de algumas das intervenções citas, por exemplo. A distinção entre os tipos de entidades se dá por causa do critério da senciência. Os seres sencientes possuem sistema nervoso centralizado que dá origem à consciência, o que faz possível que sejam moralmente prejudicados ou beneficiados. As chamadas entidades abstratas não possuem tais estruturas… É interessante notar que a defesa que entidades abstratas assume formas reconhecidamente perigosas em certos contextos políticos, como na ideia de que a sociedade é um organismo, e os indivíduos são meras peças para a manutenção do todo, não importando como é sua situação. O fascismo é repleto de ideias como essas, mas elas o totalitarismo delas só costuma ser reconhecido quando afeta humanos.

    -Em tese, com suficiente avanço da tecnologia, PODERÍAMOS evitar qualquer morte ou sofrimento. Mas disso não podemos concluir que é isso que DEVERÍAMOS fazer, simplesmente porque está ao nosso alcance. Para isso seria necessário primeiro demonstrar que toda morte e todo sofrimento DEVE ser evitado. O que você ofereceu é simplesmente o fato de que todo ser EVITA a morte e o sofrimento. Isso é descritivo. Há um salto muito grande de uma coisa para outra, como você mesmo indica com seu raciocínio.

    A explicação se dá novamente por causa do critério da senciência, como mencionado no tópico acima.

    -Dito isso, há uma diferença muito grande em “deixar crianças para morrerem” e não impedir um processo biológico como a predação. Quando você faz essas comparações, não está levando em conta o que realmente faz diferença: nosso papel moral. Não é uma questão de especismo. Não creio que seja por simples incoerência ética que a maioria dos teóricos considere a distinção entre assassinato e predação. As razões são muito claras se você considera a distinção entre natureza e cultura.

    O antiespecismo implica a rejeição de um apartheid das espécies, por isso a distinção entre natureza e cultura é inválida nesse caso: http://www.cahiers-antispecistes.org/spip.php?article293#nh2

    -Se os processos cegos e aleatórios que governam a vida no planeta são limitados cognitivamente, imagine os seres humanos, que são nada mais que um dos resultados desses processos… Faria muito mais sentido pensar assim que o contrário.

    Os processos aleatórios são totalmente amorais. Seres humanos, apesar de grandes limitações, têm alguma capacidade para deliberar sobre alguns temas éticos. Se seres humanos são resultados de processos aleatórios, isso não é relevante.

    -Você afirma logo em seguida que “A evolução leva a adaptações para maximizar a transmissão de informações genéticas, não para maximizar a sobrevivência, o bem-estar ou os interesses dos indivíduos”. Eu diria que a evolução não maximiza coisa alguma, ela não possui tendências, não é teleológica. O que observamos nela são apenas padrões emergentes formados pela variação aleatória. Mas se isso para você justifica a superioridade das considerações morais (que são produtos da mente humana) como superiores aos processos biológicos que, por exemplo, estruturam o cérebro humano, então tem algo muito errado.

    O seu comentário anterior dava a entender que a evolução leva ao bem do indivíduo, é importante deixar claro que esse não é o caso. Complementando os tópicos acima, a relevância está na existência da consciência, que por definição torna alguém passível de ser prejudicado ou beneficiado. Embora este seja um tema ainda pouco explorado, este fato pode ser usado para minimamente tentar evitar danos em seres conscientes, o que não ocorre com processos biológicos (estes, ao contrário, muitas vezes levam à maximização do sofrimento).

    -Espero ter demonstrado que pelo menos em relação à predação como ela normalmente ocorreria na natureza (animais selvagens comendo outros animais selvagens, sem nenhuma interferência da civilização), não cabe qualquer consideração ética.

    O texto (http://www.pensataanimal.net/arquivos-da-pensata/145-steve-f-sapontzis/358-salvando-o-coelho-da-raposa-1) citado do Steve Sapontzis, assim como diversos trabalhos de ética animal especificamente sobre este tema escritos nos últimos anos (alguns já citados aqui também), questionam fortemente essa conclusão. Algumas considerações incluem por exemplo que, do ponto de vista da vítima, não importa a origem do dano, se é um ser humano ou um processo natural. Uma possível resposta seria uma acusação de arrogância ou de brincar de Deus. Porém, ao ignorar o problema também estamos decidindo por omissão o destino dos seres afetados. A objeção sobre isso de provocar consequências piores ignora que a situação já é bastante severa e apenas destaca a necessidade de conhecer mais sobre o assunto e de ter cautela com estratégias a serem tomadas. De qualquer forma, há diversas situações de sofrimento de animais selvagens em que o conhecimento que temos é suficiente para ajudar. Ver também a resposta ao segundo tópico abaixo.

    -Este autor também deixa claro que criticar a civilização não significa “voltar ao passado”. O modo de vida não civilizado não está no passado da humanidade, como se fosse uma fase pela qual já passamos, porque a história humana não é composta de estágios linearmente ordenados. O fato de que esta cultura (a cultura civilizada, sedentária, domesticadora…) se espalhou pelo globo não quer dizer que ela seja “mais avançada”

    Da mesma forma, dado os problemas da civilização atual, não vejo razão para concluir que a única solução esteja em copiar outras culturas que existiram antes.

    -Pelo seu raciocínio, o único modo de justificar não apenas a caça, mas a predação em geral, seria se considerássemos atos equivalentes de violência contra humanos como moralmente aceitáveis. O ponto é que não há equivalência real entre esses atos, dado a distinção entre natureza e cultura. Uma coisa cabe à consideração moral, independente de afetar humanos ou outros seres, a outra simplesmente não, independente de afetar humanos ou outros seres. Logo, a questão não é o especismo.

    A distinção entre natureza e cultura como proposta pelos seus comentários parece carecer de fundamentos e justificativas. Considere um grupo de sere humanos (sejam civilizados ou não) vítimas de um desastre absolutamente natural como um vulcão ou um terremoto. Quase todas as pessoas concordariam que as consequências do desastre são lamentáveis e que devemos fazer o possível para ajudar as vítimas. Não há qualquer manobra possível que não inclua o especismo para justificar a preocupação com humanos (civilizados ou não) e o completo descaso para com os animais selvagens.

    Curtir

  6. Olá,
    Obrigado novamente pela oportunidade de participar desse debate.
    Eu gostaria de focar minha resposta num termo que você mesmo introduziu no debate: responsabilidade. Afirmar que “predação, doenças, parasitismo, coerção sexual e outros processos naturais” que incluem a morte de seres vivos (incluindo humanos), algumas vezes causada por outros seres vivos (incluindo humanos) são parte intrínseca da vida animal não é valorativo, é descritivo. Afirmar que todas essas ações e processos são moralmente qualificáveis seria muito estranho, pois nem sempre partem de agentes morais. Ações que não são morais não podem estar na esfera da responsabilidade moral humana, não cabendo a nós qualquer culpa por omissão.
    Não cabe a nós aceitar moralmente ações que estão fora da nossa esfera moral. Essas ações não podem ser intrinsecamente boas ou ruins. Aceitar a naturalidade dessas coisas é aceitar a realidade, e isso sendo descritivo é completamente diferente de afirmar que assassinato, estupro e negligência (ações necessariamente morais e humanas) são moralmente aceitáveis ou neutras, mesmo que algumas pessoas usem a naturalização como justificação para esses atos, o que é realmente uma falácia. Não é possível negar a distinção entre ações humanas e processos naturais. Só temos responsabilidade enquanto seres morais quando a ação é moral. O que não quer dizer que essa distinção não se torne mais difícil em alguns casos complexos.
    Do fato de que os seres vivos sempre mataram outros seres vivos, não podemos assumir que matar é moralmente correto. A questão ética pertinente, porém, não é como fazer o assassinato deixar de existir, mas sim como lidar com ele e suas consequências. Até que ponto nós podemos interferir na liberdade de outros ou na natureza para evitar o assassinato? Essa é uma questão ética pertinente.
    Aceitar que todos sofrem e morrem não é tão fácil, causa sofrimento e faz parte do amadurecimento cognitivo-emocional de uma pessoa. Durante esse processo, é normal culpar a si mesmo e aos outros, como se a aceitação da morte fosse equivalente a “matar” ou “deixar morrer”, muitas vezes porque faltou um mecanismo de enfrentamento. Isso é cada vez mais comum hoje em dia. No outro extremo, a pessoa pode perder sua empatia, tratando a vida como se não tivesse valor, naturalizando o assassinato ou assumindo um tipo de determinismo. Note que você utiliza exatamente esses verbos (“matar”, “deixar morrer”), mesmo quando fala de processos naturais. Fico preocupado tanto com a possibilidade de que você propositalmente misture essas duas instâncias como se não houvesse distinção alguma, quanto na possibilidade disso não ser proposital. Aceitar que a morte e o sofrimento são reais e fazem parte da nossa existência biológica não significa ficar impassível diante destas coisas, e certamente não justifica a negação de socorro, abandono de incapaz, banalização da violência ou atitudes semelhantes. Mas, ao mesmo tempo, também não implica que temos a responsabilidade moral de acabar com toda morte e sofrimento, e não torna equivalente a um assassinato a postura de aceitar que processos naturais levem os seres à morte.
    Não é preciso rejeitar a morte em si nem lutar contra o próprio fato existencial da finitude e da mortalidade para dar valor moral positivo à vida. Se você pessoalmente acredita que há algo que você pode fazer para diminuir o sofrimento de algum ser, essa questão é pessoal. Podemos fazer algumas coisas para aliviar as dores inerentes à vida, mas sempre considerando que algumas “soluções” podem ser ainda piores do que aquilo que queríamos evitar e que não faz sentido deixar de experimentar a vida em liberdade ou em paz simplesmente para não experimentar qualquer tipo de dor ou sofrimento, ou para que outros não experimentem.
    O que a sua posição parece sugerir é que não há diferença alguma entre salvar uma criança que está se afogando e tentar interferir na relação de predação entre lobos e coelhos para diminuir o sofrimento. Ambas seriam prerrogativas morais do mesmo tipo. Minha posição é que isso é inconsistente com nossas limitações éticas. Embora seja absolutamente normal, por causa no nosso senso inerente de justiça, sentir empatia pelo coelho que em desespero luta pela sua vida, e querer salvá-lo como a uma vítima indefesa que clama por justiça, e embora seja fácil identificar o lobo como um agente que, embora inconsciente e amoral, provoca morte, sofrimento e injustiça, e que, por isso, precisa ser parado, outros fatores precisam ser considerados. O que cabe aqui são considerações particulares, e não gerais. Quais seriam os custos e as consequências de interferir na natureza para poder eliminar um processo natural como a predação? Podemos realmente calcular isso? Salvar uma criança de um rio ou um coelho de um lobo é uma questão moral simples, mas interferir na predação em si seria como tentar impedir todas as crianças do mundo de se afogar, e isso é impossível enquanto elas tiverem a liberdade de nadar.
    Primeiro: Nossa legitimidade para mudar nossos próprios atos é muito maior do que para interferir nas ações de outros, especialmente de seres que vivem de um modo totalmente diferente do nosso. Segundo: Códigos morais são relativos a processos históricos e culturais, não existem por si sós, de forma absoluta, imutável e definitiva. Qualquer que seja seu ideal normativo, seu “dever ser” precisa partir do “ser”, de como as coisas são, do que é descritivo e concreto. Senão será só uma idealização sem sentido.
    Enfim, de tudo que eu afirmei não se segue de modo algum que “não haveria problema em matar pessoas (ou deixar morrerem) em massa”. Não interferir nas relações de predação que envolvem outras formas de vida não equivale a considerar o assassinato como moralmente válido. Não apenas porque justificar o assassinato pela predação seria inválido, mas porque nossa responsabilidade moral se limita a ações morais.
    Do fato de que a morte existe não se segue necessariamente qualquer norma moral. Se todas as culturas humanas condenam o assassinato e aceitam a predação, não é por um determinismo biológico, um especismo ou uma incoerência ética, mas por um padrão normativo que parte da distinção entre processos naturais (natureza) e ações morais (cultura).
    2 – Sobre o consequencialismo
    Se consequencialista é todo aquele que dá qualquer importância para as consequências de suas decisões, então eu também seria consequencialista. Eu me referi ao consequencialismo enquanto elemento do utilitarismo, e por isso estava me referindo a esta perspectiva ética, e não a toda e qualquer consideração pelas consequências.
    Os problemas resolvidos pelo conceito de distribuição de utilidades partem de uma crítica interna do utilitarismo, que não atinge seus conceitos fundamentais. De acordo com a concepção utilitarista, o ser humano é um agente moral autônomo e racional, disposto a agir de acordo com a presença ou a ausência de sofrimento, para si, para outros ou para todos ao mesmo tempo. Reduzir as motivações humanas à questão da quantidade de sofrimento envolvido é o erro fundamental. As considerações morais não são racionais como idealiza o utilitarista. Elas necessariamente envolvem fatores não racionais que são descartados, desconsiderados, desprezados ou mesmo rejeitados, atacados e demonizados pelos utilitaristas. Por isso os utilitaristas têm dificuldade de resolver questões morais que envolvem sacrifício e afeto, e principalmente conflitos entre diferentes culturas. Um utilitarista não poderia, por exemplo, sacrificar uma solução ótima, de acordo com seu cálculo utilitário, em nome de motivações afetivas ou de alterações de valores de acordo com um contexto. O utilitarismo necessariamente rejeita a parte da mente humana que considera esses fatores.
    Para evitar essas críticas, a maioria dos utilitaristas atuais diz que outros fatores além do sofrimento podem ser considerados. Isso é uma tentativa totalmente falha de resolver esses problemas, pois esses outros fatores só podem ser considerados dentro da mesma da mesma operação que os utilitaristas criam para calcular o sofrimento. No fundo, isso dá no mesmo que reduzir tudo ao cálculo de sofrimento, uma vez que esses outros fatores só podem ser aceitos na medida em que podem ser quantificados e contrabalanceados à quantidade de sofrimento. Essa diferença é irrelevante, pois o cálculo de utilidade continua sendo considerado como válido. Mas a quantificação de utilidades implica num racionalismo ético, uma concepção idealista sobre funcionamento da vida. Nem sequer o sofrimento pode ser quantificado, nem mesmo de modo aproximativo, pois seu significado é contextual. O utilitarismo necessariamente superestima a racionalidade humana, e por isso é um tanto quanto irônico usá-lo para defender o antiespecismo.
    Eu concordo que não há nenhum fator que justifique o dano causado a animais na civilização. O dano que a civilização causa não é de modo algum necessário porque a própria civilização não é necessária à vida humana. Não só é desnecessária como é prejudicial. O artigo que você cita qualifica como moralmente inaceitável, dado que a vida animal tem valor intrínseco, uma estratégia de sobrevivência que é na verdade um modelo ideal dentro de uma teoria matemática binominal sobre dinâmica populacional, e conclui que a visão idílica na natureza é falsa dado que essa estratégia tende a maximizar o sofrimento com o tempo! Só um idealista poderia ver sentido nisso. É uma das consequências absurdas de partir de premissas absurdas.
    Eu sou contrário a qualquer tipo de escravidão, incluindo a animal. Para mim, a domesticação é equivalente à escravidão, porque retira o animal de seu habitat e provoca modificações no seu ser que o tornam dependente de nós. Não há nada intrinsecamente errado em ajudar animais indefesos se você pode fazê-lo sem prejudicar outros. Eu não acho que deveria ser proibido ajudar animais a se livrar de seus predadores. Mas como você eliminaria a predação numa escala global sem domesticação, confinamento, extermínio, manipulação, ou inibição de características? Eu não sei. Não conheço nenhuma opção que não implique em escravidão animal, que é uma consequência pior que a morte.
    3 – Sobre respeito às criações da natureza.
    Nós devemos respeito àquilo que não compreendemos. Àquilo que não nos cabe mudar. Àquilo que está fora do nosso alcance. A promoção do estupro, que você tentou usar como comparação, não é um desses casos. Embora algumas pessoas possam usar o discurso religioso para justificar atrocidades, a religião não se sobrepõe à consideração ética, pelo contrário, ela está intimamente relacionada à percepção de valores. Nem tudo que se utiliza da lógica e da linguagem religiosa precisa ser aceito, mesmo porque haveria contradição. Ter uma leitura sobre outras concepções éticas além do utilitarismo ajuda a compreender esse assunto.
    4 – Sobre a teoria dos sistemas
    Parece que você pretendeu criticar a teoria dos sistemas com uma crítica ao totalitarismo! Como se considerar que existem relações entre os seres vivos levasse necessariamente à conclusão de que podemos ou devemos prejudicar alguns indivíduos pelo bem da coletividade. Veja bem, se eu defendesse esse tipo de coisa, eu concordaria com seu intervencionismo. Certamente o sofrimento dos predadores valeria a pena para poder dizer com orgulho que agora vivemos num mundo eticamente coerente e justo! Ufa, agora finalmente eu posso ser coerente e não especista ao escolher não matar meus companheiros humanos!
    Mas não, considerar o todo social de modo algum implica em totalitarismo. Centralizar indivíduos, porém, é uma concepção liberal. E é um equívoco liberal muito comum considerar que qualquer perspectiva não liberal é uma perspectiva totalitária. Marxistas cometem o mesmo erro quando dizem que qualquer perspectiva não marxista é necessariamente reacionária. O que você não explicou ainda é como resolver conflitos entre as partes, já que nenhuma deve ser negligenciada. Como você pode deixar de negligenciar os indivíduos com determinados interesses ao atender os interesses de outros indivíduos, que por acaso são contrários a esses? Explique isso, por favor, estou curioso.
    Como eu disse antes, essa história de conciliar a consideração pelo sofrimento com outros aspectos é conversa fiada. Nós sabemos que na verdade os outros aspectos só são considerados em termos do cálculo de utilidades, convertidos em valores que caibam na equação geral do cálculo de sofrimento, e tudo de acordo com os critérios dos próprios utilitaristas. Isso não muda nada, assim como trocar o termo prazer por ausência de sofrimento para evitar associação com o hedonismo não muda nada. Por que motivo falta de consideração pelo sofrimento dos outros na nossa cultura? O mesmo seria válido para todas? Os povos caçadores que velam os animais que matam como se fossem pessoas não estão considerando o sofrimento desse animal? Em que sentido falta consideração pelo sofrimento animal em culturas ancestrais, que consideram animais como pessoas? O que acontece é que os utilitaristas desprezam qualquer sentido para o sofrimento que não o sentido que eles mesmos atribuem. O sofrimento não tem nenhum sentido em si mesmo, ele só adquire sentido quando processado pela mente de um ser senciente, que só o faz de acordo com seus próprios valores.
    Na sua resposta, você sugere que sequer cogitar pensar em termos de espécie implica necessariamente em intervir contra o interesse de indivíduos e a favor do interesse de espécies. Mas eu não defendi nenhum tipo de intervenção, e sim fim da intervenção abusiva que fazemos. Meu argumento é que a intervenção civilizada é abusiva porque o cérebro humano não tem a capacidade para decidir como outras espécies devem viver. Ele nem sequer tem a capacidade de decidir como a espécie humana como um todo deve viver. O motivo pelo qual a ecologia preservacionista não funciona é o mesmo pelo qual o utilitarismo não funciona: porque reduzem redes de relações muito complexas a modelos matemáticos sem conexão com a realidade.
    O critério ecológico que você julga arbitrário, porém, faz todo sentido do ponto de vista de que as espécies ameaçadas, que alguns ambientalistas tentam salvar, são as espécies que nós mesmos atingimos com nossa ação, e por isso essa ação tem sentido reparativo em relação ao dano humano causado. Uma população pode voltar ao seu número ótimo em alguns anos, enquanto uma espécie desaparece para sempre. Sim, em termos individuais, cada vida é única. E isso significa que cada uma delas tem valor intrínseco, nenhuma deveria ser tirada para preservar uma espécie. Porém, o dano da perda de diversidade é incomparável. Se quiser me mostrar um link demonstrando que isso é falso, que a vida pode continuar normalmente com somente algumas espécies, tudo bem. Veja que não estou defendendo o intervencionismo preservacionista, estou apenas explicando que os critérios não parecem arbitrários como você diz.
    Mas me diga aí, como seria se nos preocupássemos com a vida dos indivíduos. Com tantos indivíduos sofrendo por aí, sendo que podemos ao menos tentar impedir esse sofrimento, seria ético fazer qualquer outra coisa além de ajuda-los?
    Parece que você não entendeu o sentido do meu link sobre A ilha de São Matheus. Como eu disse, não sou intervencionista. Como você disse, antes de decidir o que fazer com as renas, “seria preciso saber, por exemplo, qual a qualidade de vida dos seres sencientes envolvidos em comparação a outros cenários possíveis, e também como resolver eficazmente problemas como a mortalidade das renas, quando estes problemas já existirem, independentemente da sua origem”. A questão é, suponha que você estivesse lá, qual seria a escolha correta: matar as renas ou deixar elas na ilha, quando tudo que você pode saber é que ela suporta muitas renas? A moral da história é que os limites populacionais são importantes para preservar as populações de um holocausto causado pelo seu próprio crescimento indefinido. E a predação é um desses mecanismos limitadores.
    5 – Sobre a caça
    “Como um padrão resultante de processos aleatórios, ele não reconhece coisa alguma, apenas foi um tipo de adaptação que levou alguns seres a obterem sucesso. Nisso não há nada puro ou nobre para ser venerado. Se a morte produz a continuação da vida, isso não quer dizer que a morte não seja um dano.”
    Não há nada puro nem a ser venerado em qualquer ação humana. O que me surpreende é que você parece acreditar que sim, há ações humanas que são mais puras e mais nobres e mais merecedoras de veneração, ou ainda que a humanidade deva se tornar cada vez mais pura ou nobre ou venerável, que esse seria o objetivo da ética.
    Se a morte produz continuação da vida, mas é um dano, e o dano deve ser evitado, logo aquilo que produz a vida deve ser evitado, logo a vida deve ser evitada. É isso? Seria melhor que não existisse vida, sofrimento e morte?
    Se nos limitarmos a falar de indivíduos, sequer seria correto usar o termo “predação”? Predação é uma relação entre espécies, não entre indivíduos. Um urso pode matar e comer uma série de animais com os quais não tem qualquer relação de predação.
    6 – Sobre conflitos culturais
    Sim, canibalismo eventualmente pode ter uma função. Perdemos toda coerência ética se admitirmos que às vezes o canibalismo, o estupro e a mutilação acontecem na natureza, incluindo entre humanos? Novamente, não estou sugerindo que esses atos sejam justificáveis, ainda mais em condições completamente diferentes da natureza, como na civilização. Mas considerar que esses atos são intrinsecamente ruins não significa que devemos eliminá-los absolutamente do mundo, e muito menos que podemos impor isso a outras formas de vida.
    Sim, o que você chama de coerção sexual, sexo forçado, sempre existiu. A questão ética, que certamente não é simples, é até que ponto seria plausível limitar a liberdade para evitar todo e qualquer tipo de violência? O que poderia ser feito para evitar todo e qualquer canibalismo, estupro e mutilação? Eu não sei. Mas com o fim da civilização, estaríamos sujeitos ao mesmo que todo ser humano e todo ser vivo sempre esteve sujeito na natureza. Se isso não é suficiente pra nós, é porque, em primeiro lugar, nos julgamos superiores, merecedores e capazes de algo melhor do que os outros animais. Diga como isso pode não ser especista.
    A natureza não tem um comportamento único, ela não pode ser “copiada” sem contradições. Os seres da natureza agem todos de modos diferentes, não há como copiar sem selecionar. E ao selecionar, fazemos uma escolha ética. Logo, não existe mera cópia da natureza isenta de valor ou de moralidade. Nesse sentido, sim, da natureza por si só não extraímos nenhum valor. O valor vem de nossa visão necessariamente seletiva da natureza, nossa percepção de valores.
    “No caso de humanos a morte é sempre considerada prejudicial, exceto em casos raros como de eutanásia. Quase sempre tenta-se prolongar a vida na medida do possível, e morrer através da predação dificilmente é considerado uma forma desejável de morrer.”
    Perceba como você generaliza a cultura civilizada. Não são os humanos como um todo que pensam assim, são somente os civilizados. A morte não é sempre considerada prejudicial, isso mesmo em culturas que nem tem o conceito de eutanásia. Civilizados não sabem o que é viver, por isso temem tanto a morte. Os critérios civilizados não servem de base para nenhuma ética que pretenda ser antiespecista, porque a civilização é inerentemente especista, pois não haveria civilização sem uso de animais.
    “Sim, as relações devem ser levadas em conta. Por outro lado, muitas vezes o interesse do grupo poderia ser buscado sem prejudicar os indivíduos, ou minimizando os prejuízos a estes. Além disso, não se trata de suicídio altruísta no caso da caça/predação. A morte da presa não é voluntária, não é um suicídio.”
    Quanto a isso concordamos e não vejo nenhum problema. Mas se você é capaz de aceitar o sacrifício voluntário, então não há qualquer motivo para não aceitar a predação. Veja só: o indivíduo que se entrega não precisa ter interesse na sua própria morte, ele meramente reconhece a necessidade de relativizar, naquele caso, o interesse na sua própria vida. Caso ele não reconheça, o erro será dele, não dos outros. Ele é que estará escolhendo a competição ao invés da cooperação, colocando sua vida acima da vida de outros. Sua vida não perde valor porque ele se entrega nem ganha valor porque ele luta por ela, correto? Então você teria que admitir que em algumas situações é moral matar. Os animais não se entregam voluntariamente porque não fazem esse tipo de consideração. Não precisa ser voluntário se é necessário. E não deixa de ser uma cooperação.
    Não lhe ocorre que as coisas na natureza só são como são porque, como um rio, esses processos aleatórios levam necessariamente ao caminho de menor gasto de energia, e que qualquer interferência tende somente a aumentar o sofrimento? Talvez não, porque você parte de uma concepção, que me parece absurda, de que o sofrimento só pode ser minimizado se houver intenção racional e benéfica por trás disso. Que só o homem, usando seu potencial técnico e racional, pode transformar a natureza num lugar decente. Por isso uma das suas premissas é a crítica à visão “idílica” da natureza. Ela não é boa porque se fosse reduziria a quantidade de sofrimento ao invés de aumentar… Mas que lógica é essa? Qual a base para esse tipo de afirmação senão uma abstração completa, uma idealização de como a natureza deveria funcionar? Diminuir o sofrimento total me parece tão impossível quanto se opor à lei da entropia.
    O critério de senciência apenas indica quais seres sentem algo semelhante ao que nós chamamos de sofrimento. Isso ajuda nas considerações éticas, mas por si só não é suficiente para pretendermos eliminar a predação na natureza. Possuir um sistema nervoso central significa apenas ter um ancestral comum com um ser que desenvolveu um padrão resultante de processos aleatórios, é apenas um tipo de adaptação que levou alguns seres a obterem sucesso, e usá-lo como critério para valorizar a vida é tão arbitrário quanto usar qualquer outro órgão. Qual a diferença entre antropocentrismo e a centralidade do cérebro, que é o órgão que dizemos o que ser humano mais desenvolveu?
    Explique por que pensar na sociedade como um sistema é perigoso e pensar no seu corpo como um sistema não é. Do modo como você fala, fica parecendo que o totalitarismo e o fascismo são consequências necessárias de se pensar a sociedade como sistema. Como se sistema implicasse na redução real dos elementos a elementos estáticos e manipuláveis. Vários sociólogos abordam a sociedade como um sistema, e o fato de que tiranos possam se utilizar de metáforas biológicas para justificar o controle social não implica de modo algum que o único modo não fascista, não totalitário ou libertário de se pensar na sociedade é o modo individualista. Existem vários modos de totalitarismo e de fascismo, nem todos dependem de uma visão coletivista.
    Existe alguma diferença intrínseca entre indivíduo e coletivo? Um ser completamente diferente de nós poderia perceber essa diferença por conta própria? “Sistema nervoso central” é somente um nome que criamos para chamar um conjunto de células que possuem uma mesma função. Chamar essa função de “consciência”, como se ela fosse totalmente distinta de outras funções corporais, é misticismo. Se a centralidade deve ser genética, ou seja, só podemos considerar dignos os seres com ancestral comum, que possui estruturas que nós prezamos porque relacionamos com nossa própria consciência, então isso é apenas outro tipo de divisão arbitrária entre os seres. Se a centralidade for a função, então deveríamos considerar também outras estruturas com funções semelhantes. Por que considerar apenas as funções homólogas ao sofrimento humano, e não as análogas?
    Perceber a natureza como composta de relações entre os seres não implica em buscar o controle totalitário dos indivíduos por meio dessas relações. Pelo contrário, perceber que essas relações são complexas demais para que intervenções controladoras sejam benéficas é um dos argumentos a favor da autonomia.
    “O antiespecismo implica a rejeição de um apartheid das espécies, por isso a distinção entre natureza e cultura é inválida nesse caso”
    Desculpe, mas em que caso você diz que a distinção é inválida? No caso de julgarmos se uma ação é moral ou não? Nesse caso, devemos considerar somente o bem das espécies sencientes? Não entendi. Para não ser especista, deveríamos então nos posicionar, por exemplo, quanto ao processo de oxidação, que efetivamente causa morte e sofrimento, talvez propondo que usemos dos nossos meios técnicos para, quem sabe, eliminar a oxidação dos processos biológicos? Veja, não faz sentido. Se não podemos fazer apartheid das espécies, e eu concordo com isso, então a civilização como um todo nem deveria existir, e sem ela você ficaria sem os meios para se posicionar contra a predação e demais processos biológicos.
    “Os processos aleatórios são totalmente amorais. Seres humanos, apesar de grandes limitações, têm alguma capacidade para deliberar sobre alguns temas éticos. Se seres humanos são resultados de processos aleatórios, isso não é relevante.”
    Se a capacidade humana para moralidade surgiu a partir de processos amorais, então existe alguma continuidade, alguma causalidade entre eles. O que eu estava afirmando com isso é que a senciência não é absurda, assim como a moralidade, e não justifica ser valorada acima de qualquer outra capacidade que surge a partir de processos amorais ou sem consciência.
    “O seu comentário anterior dava a entender que a evolução leva ao bem do indivíduo, é importante deixar claro que esse não é o caso. Complementando os tópicos acima, a relevância está na existência da consciência, que por definição torna alguém passível de ser prejudicado ou beneficiado. Embora este seja um tema ainda pouco explorado, este fato pode ser usado para minimamente tentar evitar danos em seres conscientes, o que não ocorre com processos biológicos (estes, ao contrário, muitas vezes levam à maximização do sofrimento).”
    A evolução não leva a nada exceto à perpetuação de certos processos, o que torna a vida possível. Para você o bem do indivíduo implica na minimização do sofrimento. Primeiro, seria interessante se você demonstrasse que o sofrimento PODE ser diminuído sem comprometer os processos que tornam a vida possível. Para afirmar isso, não é suficiente mostrar que você é capaz de fazer um ou dois indivíduos deixar de sofrer algo que ele sofreria na natureza, mas sim que é possível que os mesmos processos que possibilitam a vida ocorram sem possibilitar também a morte e o sofrimento. Você teria que provar que pode fazer melhor que esses processos cegos que criaram a vida. Boa sorte.
    Como você separa processos biológicos de processos conscientes? O que você chama de consciência é apenas o efeito de uma série de processos químicos, orgânicos, físicos. A consciência não tem existência própria, é só uma coisa da qual gostamos de nos gabar. Não tem maior valor que a capacidade de fotossíntese.
    “do ponto de vista da vítima, não importa a origem do dano, se é um ser humano ou um processo natural”
    Eu concordo que, se nós tivéssemos, por conta de nossa capacidade, a responsabilidade de evitar todo dano possível aos seres que possuem interesse de evitá-lo, então deveríamos fazê-lo, mas ao fazê-lo necessariamente nos colocaríamos acima destes, no papel de deuses. Dizer que estaríamos nos omitindo ao “permitir” a morte ainda implicaria na responsabilidade, na superioridade, no papel de deus. Como se a morte precisasse de nossa permissão. Não há omissão se não há responsabilidade. Como a situação da predação pode ser “severa”, se sempre existiu? Severa em relação a que? A uma existência hipotética onde não há predação? Veja bem, o ato civilizado de comer animais não pode ser considerado predação, a relação predador-presa não existe mais nesse contexto. Comparar o que fazemos com predação, parasitismo ou qualquer outra relação que no fundo é simbiótica é um erro, porque o próprio avanço tecnológico nega a simbiose com os processos biológicos, que são lentos. O avanço tecnológico impõe valores culturais sobre a natureza porque está baseado na superioridade da razão humana, no logocentrismo.
    Ajudar animais sendo predados é uma coisa, não vejo problema nisso. Pretender eliminar a predação, por meio de um sistema tecnológico que é inerentemente especista, isso é que não tem sentido. Vá e faça o que puder para ajudar o máximo de animais possível. Eventualmente você irá perceber que tentar eliminar o sofrimento natural é tão absurdo quanto eliminar a entropia. Salvar animais da predação só pode ter as seguintes consequências: 1 – outro animal será predado. 2 – o predador morrerá. 3 – o predador sobreviverá graças a um aparato tecnológico, mas deixará de expressar seus instintos de caça, tornando-se como um animal domesticado, e a presa precisará ter sua população limitada por um fator antrópico, sendo colocada numa espécie de reserva. Temos algum direito de confinar, domesticar ou tirar os seres de seus habitats naturais? Enfim, agir contra a predação em geral exigiria o controle totalitário da civilização sobre os seres da natureza. Por fim, restará apenas aceitar que animais matam animais e que você não passa de um animal, e nenhuma idealização sobre o poder da racionalidade civilizadora pode mudar isso. Por outro lado, ao criticar a racionalidade civilizadora você criticaria todo sofrimento desnecessário que causamos; que é todo sofrimento que podemos comprometer os processos vitais.
    “Da mesma forma, dado os problemas da civilização atual, não vejo razão para concluir que a única solução esteja em copiar outras culturas que existiram antes.”
    Veja bem, não se trata de copiar culturas que “existiram antes”. Note o erro dessa afirmação, ela trata culturas ancestrais como se elas não existissem mais, ou pertencessem ao passado, como se a nossa fosse mais avançada no tempo, como se o desenvolvimento tecnológico fosse determinado pelo tempo da história humana, ou como se as sociedades humanas pudessem ser colocadas numa escala linear de cultura que tem a nossa como ápice. Isso é etnocentrismo.
    “A distinção entre natureza e cultura como proposta pelos seus comentários parece carecer de fundamentos e justificativas. Considere um grupo de seres humanos (sejam civilizados ou não) vítimas de um desastre absolutamente natural como um vulcão ou um terremoto. Quase todas as pessoas concordariam que as consequências do desastre são lamentáveis e que devemos fazer o possível para ajudar as vítimas. Não há qualquer manobra possível que não inclua o especismo para justificar a preocupação com humanos (civilizados ou não) e o completo descaso para com os animais selvagens.”
    Estamos totalmente de acordo que um desastre natural é lamentável e que devemos ajudar as vítimas, sendo elas humanas ou não. Mas o que você estava afirmando parecia ir muito além. Você estava criticando não apenas uma atitude que contradiz a empatia humana, não de se lamentar e não desejar ajudar quem parece estar sofrendo, mas sugerindo que deveríamos usar os meios tecnológicos disponíveis para eliminar os desastres naturais da existência, como se não devessem existir, como se sua permanência e seus efeitos fossem responsabilidade nossa, como se coubesse a nós decidir se vulcões ou terremotos devem continuar existindo. E como se nosso aparato tecnológico pudesse realizar algo assim sem causar nenhum problema pior. E isso é uma implicação que não se segue, e algo com consequências completamente diferentes. Veja bem, se eu puder ajudar uma formiga ao invés de pisar nela, com certeza o farei. Faria o mesmo com o um robô, ou um barquinho de papel. É uma questão de empatia, mesmo que o outro não sinta nada. Mas meu desejo natural de que outros seres não sofram, ou minha capacidade de considerar o desejo deles de não sofrer, não justifica que alteremos ou destruamos relações naturais, substituindo por relações reguladas por fatores antrópicos, como se tivéssemos esse direito sobre o mundo. Isto sim implica em especismo.

    Curtir

  7. Olá,

    Fico feliz que você revele interesse em aprofundar as discussões sobre esses temas.

    Sobre as intervenções para ajudar animais selvagens vítimas de causas naturais, sugiro esse texto que aborda várias objeções, incluindo algumas que discutimos aqui: https://masalladelaespecie.files.wordpress.com/2011/01/luciano-carlos-cunha-sobre-danos-naturais.pdf

    >Afirmar que todas essas ações e processos são moralmente qualificáveis seria muito estranho, pois nem sempre partem de agentes morais. Ações que não são morais não podem estar na esfera da responsabilidade moral humana, não cabendo a nós qualquer culpa por omissão.

    Não cabe a nós aceitar moralmente ações que estão fora da nossa esfera moral. Essas ações não podem ser intrinsecamente boas ou ruins. Aceitar a naturalidade dessas coisas é aceitar a realidade[…]. Não é possível negar a distinção entre ações humanas e processos naturais. Só temos responsabilidade enquanto seres morais quando a ação é moral.

    Como ilustrado por exemplos anteriores, o fato de algo partir de agentes morais ou não é irrelevante, e não pode justificar omissões. Os exemplos dos desastres naturais como terremotos ou vulcões, doenças, acidentes, condições climáticas e outros danos naturais que não partem de agentes morais deixam claro que esses danos são tão prejudiciais quanto seriam se tivessem origens em agentes morais. E o fato de não terem origem em agentes morais não justifica omissões no caso desses exemplos (isso fica intuitivamente mais gritante em casos que envolvem humanos). Caso contrário seria inaceitável manter, em larga escala, sistemas de prevenção e alerta de desastres e acidentes, atendimentos de emergência e prevenção e tratamento de doenças. Afirmar que “só temos responsabilidade enquanto seres morais quando a ação é moral” teria a curiosa consequência de exigir que na entrada de hospitais fossem aplicados questionários para verificar se os danos que os pacientes sofrem tiveram origem em agentes morais, e barrar a passagem de todos aqueles em que isso não se verifica.

    >Até que ponto nós podemos interferir na liberdade de outros ou na natureza para evitar o assassinato? Essa é uma questão ética pertinente.

    >não faz sentido deixar de experimentar a vida em liberdade ou em paz simplesmente para não experimentar qualquer tipo de dor ou sofrimento, ou para que outros não experimentem.

    >O que a sua posição parece sugerir é que não há diferença alguma entre salvar uma criança que está se afogando e tentar interferir na relação de predação entre lobos e coelhos para diminuir o sofrimento.

    >Quais seriam os custos e as consequências de interferir na natureza para poder eliminar um processo natural como a predação? Podemos realmente calcular isso? Salvar uma criança de um rio ou um coelho de um lobo é uma questão moral simples, mas interferir na predação em si seria como tentar impedir todas as crianças do mundo de se afogar, e isso é impossível enquanto elas tiverem a liberdade de nadar.

    >Nossa legitimidade para mudar nossos próprios atos é muito maior do que para interferir nas ações de outros, especialmente de seres que vivem de um modo totalmente diferente do nosso.

    No caso das crianças se afogando, o dano do afogamento é minimizado porque no caso de humanos existe em larga escala o cuidado parental (e também por amigos, familiares ou outras pessoas) e equipes e ferramentas para proteger de ameças, resgatar e oferecer cuidados médicos às vítimas. Você parece concordar que existe o dever de, ou talvez que seja permissível, ajudar animais selvagens em algumas situações mas não em larga escala, como é feito com humanos. Qual o limite acha que deve haver entre o aceitável e o inaceitável? Que critérios podem ser usados para que esse limite não seja arbitrário? Lembre que eu estou falando de formas de ajuda que tragam consequências melhores do que não fazer nada, embora, dado o especismo, isso não são seja usado como desculpa para não intervir quando as vítimas são humanas em casos igualmente ou menos urgentes.

    Você afirma que a consideração moral deve ser limitada pela distância e proximidade relacional. Há vários motivos para abandonar essa posição:

    “Sendo certo que esta abordagem acomoda, como dissemos antes, certas intuições enraizadas na nossa tradição moral, se aceitarmos o argumento anterior somos levados a aceitar também a implicação altamente contraintuitiva de que não temos a obrigação moral de assistir seres humanos com quem não mantemos relações do tipo indicado. Isto parece particularmente inaceitável se considerarmos o caso de seres humanos em necessidade por causas naturais, em lugares distantes, tais como aqueles afectados por inanição ou outros desastres naturais (terramotos, tsunamis, etc.), com quem é certo que não estamos envolvidos em qualquer tipo de relação. Contudo, a maioria das pessoas estaria de acordo em que, sempre que estiver ao nosso alcance, devemos ajudar estes indivíduos.[…]

    A saída que alguns encontram para esta implicação indesejada é insistir na relevância moral das relações. O que gera deveres de assistência em nós face aos seres humanos ameaçados por causas naturais é um tipo particular de relação que mantemos, em virtude de pertencermos todos à comunidade humana. Alguns exemplos destas relações são a comunicação mútua, a reciprocidade, a cooperação, a organização conjunta de instituições politicas, familiares, etc. (Palmer, 2010, p.121). Assim, dizem, as obrigações positivas que temos face aos humanos distantes diferem daquelas que temos face aos animais distantes, dado estarmos envolvidos em relações moralmente relevantes com os seres humanos que não se aplicam no caso dos animais selvagens, pelo que devemos assistir os primeiros, mas não os segundos.

    Contudo, como é bem sabido, estas relações também não se aplicam a todos os seres humanos. Alguns indivíduos, que apresentam diversidade funcional intelectual ou outras condições incapacitantes, não estão envolvidos em comunicação mútua nem reciprocam em qualquer relação política ou familiar. Mas se estas relações são o que gera obrigações de assistência entre seres humanos, então, aqueles humanos incapazes de manter tais relações estarão, por assim dizer, e num sentido moral, fora da comunidade humana. Portanto, não teríamos qualquer obrigação de ajudá-los. Contudo, esta conclusão parece inaceitável. A maioria das pessoas não estaria disposta a negar assistência a estes seres humanos. Contudo, assistir humanos em necessidade que não cumpram com os requisitos relacionais e rejeitar simultaneamente ajudar animais em circunstâncias similares, está injustificado, uma vez que se trataria de uma discriminação de determinados indivíduos pelo facto de não pertencerem à espécie humana (especismo).[…]

    Em suma, se temos obrigações positivas de ajudar outros indivíduos em necessidade, temos essas obrigações independentemente da espécie à qual esses indivíduos pertençam (humanos e não humanos). E se temos obrigações de ajudar outros indivíduos apesar da distância (como parece ser o caso), então, devemos ajudar aqueles animais em necessidade que estão perto de nós (domésticos), assim como aqueles que vivem em lugares distantes (selvagens).”

    http://www.olharanimal.org/opiniao/catia-faria/815-sofrimento-distante-e-a-abordagem-relacional-a-etica-animal-parte-i
    http://www.olharanimal.org/opiniao/catia-faria/814-sofrimento-distante-e-a-abordagem-relacional-a-etica-animal-parte-ii

    Quanto à liberdade, mais adiante vou falar mais sobre isso em outro trecho. Por enquanto, é importante lembrar que você mesmo alertou que é importante ter cuidado com a possibilidade da palavra liberdade levar a perspectivas liberalistas perigosas. É comum acreditar que a vida dos animais na natureza é feliz porque eles são livres, como se as duas coisas fossem sinônimos automaticamente, o que não é verdade. O significado de liberdade pode não ser restrito a não ser obrigado a algo ou a não ser oprimido. Os indivíduos precisam fazer o que é do seu interesse ou o que é bom para eles, o que não está no nível de liberdade da maioria dos animais não humanos. A seriedade disso pode ser ilustrada pelo caso de humanos que não são literalmente obrigados a trabalhar, mas têm que fazer isso em condições extremas em troca de salários pequenos para não morrerem de fome. Embora tenham a opção de não trabalhar, não podemos dizer que essas pessoas são realmente livres. Os animais selvagens enfrentam várias ameaças e condições extremas e não têm outra escolha, o que não pode ser considerado liberdade. Devido à dinâmica de populações, a maioria, que morre pouco depois do nascimento tem muito pouca chance de viver e quase nenhuma de exercer a liberdade. Mesmo em casos envolvendo humanos, se a liberdade não permite estar livre de danos, ela não é tão significativa assim.

    >Se todas as culturas humanas condenam o assassinato e aceitam a predação, não é por um determinismo biológico, um especismo ou uma incoerência ética, mas por um padrão normativo que parte da distinção entre processos naturais (natureza) e ações morais (cultura).

    Nem todas as culturas condenam ou condenaram o assassinato, e também nem todas aceitam a predação (quando afeta humanos). Isto é, que cultura se entrega voluntariamente a predadores para morrer? Diversas culturas evitaram a predação com o uso de ferramentas.

    >Se consequencialista é todo aquele que dá qualquer importância para as consequências de suas decisões, então eu também seria consequencialista. Eu me referi ao consequencialismo enquanto elemento do utilitarismo, e por isso estava me referindo a esta perspectiva ética, e não a toda e qualquer consideração pelas consequências.

    Como já dito, eu também tenho várias críticas ao utilitarismo. É mais certo dizer que o utilitarismo é uma vertente do consequencialismo e não o contrário. Por outro lado, teorias deontológicas e outras muitas vezes têm a limitação de dar pouca ou nenhuma consideração pelas consequências quando há conflitos de interesses e de levar a cenários que dificilmente seriam aceitáveis.

    Creio que nossa conversa pode passar a falsa impressão de que o utilitarismo, ou mesmo o consequencialismo, é necessário para haver preocupação pelo animais selvagens ou para a refutação da visão idílica da natureza. Isso é falso, e indico a seguir textos que fazem isso a partir de outros teorias, como as deontológicas.

    https://lookaside.fbsbx.com/file/Legal%20Personhood%20and%20the%20Positive%20Rights%20of%20Nonhuman%20Animals.pdf?token=AWzaPL3rakX6dqnN_wCEXlt058svn2j6kfCvtigs5GyI3lJdq1bcg5GnMPhgR1yf6HOrmQ47egrKCgI4IbeSFJdNYOGh5s7G4wbdF78ZbW5kS0qXznc0RVW37HZSqccSdxo2HaHLffIkZZkHxJKGpcIy

    Clique para acessar o 79-100.pdf

    Clique para acessar o LifeInTheWild20120307.pdf

    >Para evitar essas críticas, a maioria dos utilitaristas atuais diz que outros fatores além do sofrimento podem ser considerados. Isso é uma tentativa totalmente falha de resolver esses problemas, pois esses outros fatores só podem ser considerados dentro da mesma da mesma operação que os utilitaristas criam para calcular o sofrimento.

    >essa história de conciliar a consideração pelo sofrimento com outros aspectos é conversa fiada. Nós sabemos que na verdade os outros aspectos só são considerados em termos do cálculo de utilidades, convertidos em valores que caibam na equação geral do cálculo de sofrimento, e tudo de acordo com os critérios dos próprios utilitaristas.

    Se eles considerassem outros fatores como tendo valor intrínseco não seriam mais utilitaristas por definição, já que o utilitarismo é uma teoria monista, considera que só as experiências (ou só preferências conforme o tipo) têm valor intrínseco, e isso é algo que leva a críticas sérias ao utilitarismo. O que você falou faz sentido quando algo tem apenas valor instrumental, algo que não tem valor por si mas apenas quando serve indiretamente para outras coisas.

    Suponho que ninguém acredite que seja possível quantificar e comparar o sofrimento plenamente e com precisão. Mas isso não quer dizer que qualquer tentativa de estimar o sofrimento, mesmo que grosseiramente, não possa ajudar e deva ser rejeitada, e que é melhor ignorar completamente essas questões. Por exemplo, é incontestável que, todo o resto sendo igual, uma alfinetada, durante um segundo, em apenas um indivíduo é menos pior do que ser queimado vivo, durante muito tempo, e com milhares de vítimas. Colocar ambos os casos no mesmo nível, por causa da impossibilidade de precisar e comparar o sofrimento, seria imaturo e absurdo. Ocorre algo parecido com outros casos menos extremos, como no da contracepção, no qual a liberdade para procriar de alguns animais pode ser considerada como tendo um peso menor que o sofrimento e mortes prematuras de diversos indivíduos por fome ou outras causas.

    >O utilitarismo necessariamente superestima a racionalidade humana, e por isso é um tanto quanto irônico usá-lo para defender o antiespecismo.

    O especismo é uma discriminação com base na espécie, que é injustificada porque desconsidera o critério da senciência. Questões relacionadas à cognição não são relevantes aqui, mas sim as relacionadas à senciência. Dito isso, concordo que muitos utilitaristas, e também adeptos de outras teorias, relevam posturas especistas em situações em que tentam colocar humanos acima de outras animais.

    >O artigo que você cita qualifica como moralmente inaceitável, dado que a vida animal tem valor intrínseco, uma estratégia de sobrevivência que é na verdade um modelo ideal dentro de uma teoria matemática binominal sobre dinâmica populacional, e conclui que a visão idílica na natureza é falsa dado que essa estratégia tende a maximizar o sofrimento com o tempo! Só um idealista poderia ver sentido nisso. É uma das consequências absurdas de partir de premissas absurdas.

    (Acredito que a vida animal não seja considerada pelo autor como tendo valor intrínseco, o que seria uma forma de biocentrismo. Em resumo, os animais têm um interesse em não sofrer e um interesse em viver, porque a morte os priva de possíveis experiências positivas futuras, e não porque a vida tem valor intrínseco.)

    O artigo simplesmente aponta que o sofrimento na natureza é imenso porque a esmagadora maioria dos animais que nascem morrem prematuramente por inanição, calor, frio, doenças ou outras causas naturais. Isso é verdade mesmo se apenas uma pequena porcentagem desses animais for senciente. E esse artigo aborda apenas uma espécie, em apenas um local e durante apenas um ciclo reprodutivo. Esse fato é independente das teorias de dinâmica populacional e suas limitações. A maioria das pessoas pensa em animais selvagens como animais adultos, sadios e felizes. Isso sim é absurdo e falso, e não o contrário.

    >Eu sou contrário a qualquer tipo de escravidão, incluindo a animal. Para mim, a domesticação é equivalente à escravidão, porque retira o animal de seu habitat e provoca modificações no seu ser que o tornam dependente de nós. Não há nada intrinsecamente errado em ajudar animais indefesos se você pode fazê-lo sem prejudicar outros. Eu não acho que deveria ser proibido ajudar animais a se livrar de seus predadores. Mas como você eliminaria a predação numa escala global sem domesticação, confinamento, extermínio, manipulação, ou inibição de características? Eu não sei. Não conheço nenhuma opção que não implique em escravidão animal, que é uma consequência pior que a morte.

    Em primeiro lugar, é preciso notar que a predação envolve danos imensos para as vítimas, e que mesmo que as alternativas supostamente envolvam outros danos menores, ainda assim seriam preferíveis.

    Se você acha que viver nos ambientes selvagens permite que os animais expressem e cumpram suas verdadeiras naturezas, ou desenvolvam suas capacidades, esse não é o caso. Alguém precisa estar vivo para viver de acordo com a sua própria natureza. Dado que a maioria dos animais morre de forma prematura, sem contar que muitas vezes morrem de formas terríveis e dolorosas, se considerarmos só o desenvolvimento das suas capacidades e se podem cumprir suas naturezas, parece claro que isso não ocorre. Não falamos que humanos recém nascidos mortos precocemente se beneficiam da liberdade para desenvolver suas capacidades ou cumprir suas naturezas.

    Realizar seu potencial ou suas capacidades é bom em si mesmo para os indivíduos, independentemente das consequências? Ou essas capacidades são relevantes somente na medida em que nos permitem satisfazer preferências e ter experiências positivas, em vez de frustração e sofrimento?

    O seguinte trecho complementa isso e o que foi dito sobre liberdade:

    “Tal como acontece com humanos, “livre” não é sinônimo de “selvagem”. Críticos de qualquer projeto de proteção ao bem-estar de elefantes podem afirmar que os beneficiários da assistência médica, ajuda alimentar e socorro de emergência não serão verdadeiramente livres. Esse não é o lugar apropriado para explorar a metafísica da liberdade, nem para entrar no debate político e humano sobre esquerda e direita. Elefantes não são atores econômicos; a expressão “estado de bem-estar” pode disparar alarmes libertários, mas nesse contexto é politicamente neutra. Se executadas inteligentemente, intervenções de crise em tempos de seca não precisam dar origem a uma “cultura de dependência” nos elefantes; isso não equivale à hora de alimentação no zoológico. Críticos sem dúvida alegarão que elefantes assistidos ou salvos do perigo por humanos não são mais “selvagens” ou “naturais” verdadeiramente. Mas humanos que usam roupas ou tomam medicamentos não são assim menos humanos ou de alguma forma rebaixados quando comparados aos “selvagens” da mesma espécie. O mesmo se aplica a elefantes.

    Alguns defensores dos animais alegam que o uso da imunocontracepção em parques de vida silvestre superpovoados viola o direito presumido dos animais não-humanos à liberdade de procriação. O monitoramento íntimo ou remoto como sondado aqui viola o suposto direito dos animais não-humanos à privacidade. Mas preocupações com invasões de privacidade, em particular, são uma projeção antropomórfica injustificada de nossa parte. A alternativa ao controle de fertilidade é assistir um filhote morrer lentamente de fome num habitat degradado, ou a prática brutal do “abate” (i.e. o massacre de famílias inteiras de elefantes) para prevenir a degradação ecológica.

    A perda de um filhote ou de uma criança, ou de uma matriarca ou de uma mãe, é traumática para elefantes e humanos igualmente.”

    David Pearce – Um Estado de Bem Estar para Elefantes. Custos e aspectos práticos da assistência médica ampla a elefantes africanos livres

    >Nós devemos respeito àquilo que não compreendemos. Àquilo que não nos cabe mudar. Àquilo que está fora do nosso alcance. A promoção do estupro, que você tentou usar como comparação, não é um desses casos. Embora algumas pessoas possam usar o discurso religioso para justificar atrocidades, a religião não se sobrepõe à consideração ética, pelo contrário, ela está intimamente relacionada à percepção de valores.

    Não compreendemos totalmente doenças como o câncer, nem compreendemos totalmente os problemas relacionados a política, economia e medicina. Devemos respeitá-los e não buscar curas ou soluções por causa disso? Vítimas do holocausto nazista também não estavam em posição de mudar sua situação, e derrotar os nazistas possivelmente estava fora do seu alcance. Por isso deveriam respeitar o nazismo e não tentar escapar? Não está ao nosso alcance acabar totalmente com o estupro e a coerção sexual, dado que ocorrem amplamente na natureza, então devemos respeitar o estupro??

    >Parece que você pretendeu criticar a teoria dos sistemas com uma crítica ao totalitarismo! Como se considerar que existem relações entre os seres vivos levasse necessariamente à conclusão de que podemos ou devemos prejudicar alguns indivíduos pelo bem da coletividade. Veja bem, se eu defendesse esse tipo de coisa, eu concordaria com seu intervencionismo. Certamente o sofrimento dos predadores valeria a pena para poder dizer com orgulho que agora vivemos num mundo eticamente coerente e justo!
    >Perceber a natureza como composta de relações entre os seres não implica em buscar o controle totalitário dos indivíduos por meio dessas relações.
    >Explique por que pensar na sociedade como um sistema é perigoso e pensar no seu corpo como um sistema não é. Do modo como você fala, fica parecendo que o totalitarismo e o fascismo são consequências necessárias de se pensar a sociedade como sistema. Como se sistema implicasse na redução real dos elementos a elementos estáticos e manipuláveis. Vários sociólogos abordam a sociedade como um sistema, e o fato de que tiranos possam se utilizar de metáforas biológicas para justificar o controle social não implica de modo algum que o único modo não fascista, não totalitário ou libertário de se pensar na sociedade é o modo individualista. Existem vários modos de totalitarismo e de fascismo, nem todos dependem de uma visão coletivista.

    É um fato que adeptos da ecologia profunda e outros ecologistas desprezam indivíduos pelo bem do todo. A desconsideração pelo sofrimento dos animais selvagens é uma demonstração disso, assim como as semelhanças que existe entre discursos ecologistas e totalitários e o culto vago à natureza que ocorre em ambos. E não defendo desconsiderar as relações, como já disse. Também creio que seja claro que a distinção entre ação e omissão é inválida para justificar a negligência para com os animais selvagens. E a preocupação com estes de maneira alguma implica necessariamente causar sofrimento a predadores, como já disse em comentários anteriores e voltarei a abordar mais abaixo.

    “Como se considerar que existem relações entre os seres vivos levasse necessariamente à conclusão de que podemos ou devemos prejudicar alguns indivíduos pelo bem da coletividade.” Ok, se não leva então também não leva à conclusão de que os danos causados por causas não antrópicas não importam (como já explicado por numerosos exemplos).

    O texto Sobre Danos Naturais também responde à sua objeção:

    “(3) Intervir na predação implica em matar os predadores. Vimos na resposta anterior que, mesmo que essa premissa fosse verdadeira, ainda assim seria justificada pelo princípio da legítima defesa – assim como faríamos com vampiros, ou no caso de um humano que está prestes a ser predado, caso essa fosse a única maneira de resolver tal problema. A parte em itálico nos dá uma pista no sentido de apontar que a presente objeção é falsa. Mesmo hoje seria possível extinguir as espécies predadoras por esterilização, sem matar um indivíduo sequer. Note que não estou necessariamente defendendo essa saída, mas sua possibilidade real já prova que a objeção acima é falsa. Com o tempo, talvez surjam outras alternativas ainda menos danosas. Já foi inventada comida vegana para cães e gatos, nada impede que se invente para outros animais. Dentro de algumas décadas, como coloca David Pearce talvez será possível modificar o DNA das espécies, fazendo com que os ex-predadores não tenham mais essa necessidade nem o instinto de caçar (portanto, sem sentir falta dele). O debate sobre esse procedimento é uma questão à parte; mas a existência dessa possibilidade já mostra que a objeção atual é falsa. Assim, a presente objeção falha porque o princípio contra matar não é absoluto e porque matar predadores não é a única saída para o problema da predação. E, mesmo que a presente objeção obtivesse sucesso, ainda assim ela não se aplica a outros danos naturais. ”

    >Mas não, considerar o todo social de modo algum implica em totalitarismo. Centralizar indivíduos, porém, é uma concepção liberal.

    >Sim, o que você chama de coerção sexual, sexo forçado, sempre existiu. A questão ética, que certamente não é simples, é até que ponto seria plausível limitar a liberdade para evitar todo e qualquer tipo de violência? O que poderia ser feito para evitar todo e qualquer canibalismo, estupro e mutilação? Eu não sei.

    Isso novamente depende da definição dada a liberdade. Em muitos casos, sua importância pode ser deturpada ou distorcida.

    Como falei no início, não acredito que liberdade seja tudo o que importa. Concepções liberais não respeitam indivíduos, mas superestimam a liberdade e defendem a lei do mais forte e que cada um fique por si. É precisamente o que os defensores da não intervenção na natureza revelam com suas ideias de apartheid das espécies e Laissez-faire. Citando novamente o texto do Yves Bonnardel:

    “«Laissez faire», o slogan do liberalismo hoje em dia triunfante, corresponde também à atitude que os humanos sempre tiveram frente às relações entre os não-humanos (exceto, por exemplo, quando um predador entra em concorrência por uma «caça»). A insistência sobre o direito à livre determinação individual, sobretudo a dos indivíduos dominantes, tem a vantagem – para estes- de lhes evitar ter que intervir nos negócios alheios. Sabemos, entretanto, que a liberdade formal mascara com freqüência um ambiente real, onde a «lei da selva» permite, aos melhores colocados, comer os outros. Por outro lado, esta opção concede um valor supremo à liberdade, ponto que mereceria pelo menos uma discussão rigorosa; há muitas chances que certos valores caros à maior parte dos humanos, como os sentimentos de dignidade, de liberdade, de autonomia, de responsabilidade, de individualidade, de identidade, etc, o sejam bem menos para muitos outros animais.

    […] Assim, falamos mais facilmente hoje em dia do «equilíbrio natural» do que da «ordem natural»: pois a tendência que domina atualmente é mais ligada à idéia de democracia e participação do que ligada ao fascismo declarado. Uma tendência mais próxima da economia liberal do que de uma planificação do Estado. Mas se o tipo de ordem modifica, a ordem continua, quer dizer, a veneração que os humanos têm por ela continua existindo. Toda coisa que dizemos ser «natural» é pressuposta como pertencente à «ordem natural», e consideramos que existe apenas por e para esta totalidade. As coisas «naturais», quaisquer que sejam, encontram-se todas em um plano de igualdade: o pardal, a grama, a pedra, cada um ocupa seu lugar, concorre, ao seu modo, para o bom desenvolvimento do todo e será apenas percebido dentro deste esquema. Seus interesses eventuais existem apenas com a condição de serem a tradução daqueles da Ordem, porque só estes são tidos como verdadeiros. Se porventura parecem transgredir, serão negados como verdadeiros interesses (desejos «contrários à natureza»: pervertidos, degenerados…). Ou bem, na honorável intenção de reabilitá-los, mostraremos que eles se integram,apesar de tudo, ao Grande Projeto”

    O discurso de louvor à predação também lembra bastante o que é dito nesse outro texto do autor. http://www.pensataanimal.net/arquivos-da-pensata/119-yvesbonnardel/232-quem-vai-a-caca:

    “Predação e liberalismo

    Um outro uso ideológico que é feito da predação e da referência à ordem das coisas” consiste a legitimar o capitalismo como transcrição na ordem do social da luta de todos contra todos” que existiria no seio da Natureza. E ainda bem mais, como Nossa Mãe Natureza funciona através da predação e da morte – mas nos permite assim de existirmos – o capitalismo e, geralmente a vida em sociedade implica, infelizmente, que haja perdedores. Sem dúvida é necessário que compreendamos que nós somos os sobreviventes no seio destes sistemas impiedosos; devemos, para sobreviver, continuar sendo cúmplices e calar nosso desejo de solidariedade. Não há alternativa possível, pois trata-se do sistema em seu conjunto. Ele foi criado assim, acreditar o contrário seria puro idealismo (irrealismo) e levaria ao caos.

    Felizmente, neste terrível quadro, uma luz: aqueles que sofrem e sucumbem ao longo do caminho não sofrem inutilmente, eles se sacrificam para que o Todo continue a caminhar, quer dizer, e em última análise, para nós. Finalmente, tanta miséria trabalha de maneira escondida (mas de modo perceptível para quem quer enxergar) para a realização de um Bem superior:

    ‘Ainda que exista uma variedade imensa de criaturas e que cada indivíduo pareça agir como para si próprio, e ter em vista seus objetivos pessoais; entretanto… todos juntos… conspiram, neste caso, para a força ou a comodidade, e para a beleza, a harmonia ou a perfeição do todo; e, contribuem, de uma certa maneira, em um certo grau, para a vantagem e a felicidade uns dos outros19’.

    Este elogio da predação data de 1745 e é contemporâneo dos primeiros discursos ético-políticos de justificação do liberalismo: se deixarmos cada um vagar de acordo com sua vontade, disso resultará o melhor para a comunidade/totalidade, quer dizer, mais ou menos diretamente para cada um. É a mão invisível” (Adam Smith: Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações) que regula espontaneamente as coisas levando em conta o melhor interesse de todos. Que se trate do elogio liberal do capitalismo e da economia de mercado, ou do discurso a gloria da harmonia natural”, em ambos os casos insiste-se massivamente nos benefícios do jogo dos interesses privados (individuais), concorrência econômica em um caso, predação no outro, e esquecemos facilmente alguns de seus inconvenientes.

    Aparentemente, o discurso do liberalismo é construído de acordo com o mesmo modelo que o da predação. Nos dois casos coloca-se em evidência sobretudo o interesse do Todo, Natureza ou Sociedade, sem definir o que poderia ser este interesse.

    Mas, ao examinarmos de forma mais atenta, creio que há uma diferença importante entre as duas afirmações: o discurso liberal é uma justificativa e se refere ao Bem Comum para legitimar a liberdade individual, que é essencial. Aos olhos do humanismo, os humanos são considerados como indivíduos e seres livres, não o esqueçamos. O discurso sobre a predação, por outro lado, não é uma justificativa (porque a Natureza não tem que se justificar) e visa, sobretudo, demonstrar que a individualidade dos animais é uma ilusão, que quando acreditamos que eles procuram um benefício pessoal, isso acontece para o maior benefício, que é o funcionamento do Todo. Ao contrário, os não-humanos analisados dentro da ideologia naturalista, seriam apenas peças não individualizadas e naturalmente determinadas para contribuir à harmonia do Todo.”

    Curtir

  8. >O que você não explicou ainda é como resolver conflitos entre as partes, já que nenhuma deve ser negligenciada. Como você pode deixar de negligenciar os indivíduos com determinados interesses ao atender os interesses de outros indivíduos, que por acaso são contrários a esses?
    >Mas me diga aí, como seria se nos preocupássemos com a vida dos indivíduos. Com tantos indivíduos sofrendo por aí, sendo que podemos ao menos tentar impedir esse sofrimento, seria ético fazer qualquer outra coisa além de ajuda-los?

    Se você está falando dos danos por predação ou competição, na verdade diversos outros danos causados por doenças, condições climáticas, acidentes, desastres etc. muitas vezes não apresentam conflitos de interesses. Uma forma importante de intervenção por omissão que alguns autores abordam seria não propagar a “natureza” para locais onde ela não existe, como no caso da colonização espacial. Acho que está claro que temos motivos para justificar o dever moral de ajudar em larga escala os animais selvagens, exceto, na sua opinião, no caso da predação, que envolve um conflito claro de interesses. Algumas pessoas sugerem focar primeiro os casos mais “fáceis” de sofrimento de animais como a exploração por humanos, e pesquisar as melhores formar de ajudar animais selvagens em larga escala no futuro, sendo que algumas formas de intervenção atualmente não são viáveis (embora outras sejam) ou não há conhecimento suficiente sobre as possíveis consequências. Então, nos casos em que existe conflito, podemos pesquisar agora formas de ajudar e de resolver esses conflitos da melhor forma. Ferramentas que podem ser usadas para ajudar também estão sendo e podem ser mais desenvolvidas. Como você pode ter objeções ao uso dessas ferramentas, vou escrever mais sobre isso adiante.

    >Por que motivo falta de consideração pelo sofrimento dos outros na nossa cultura? O mesmo seria válido para todas?

    Mais uma vez, é preciso considerar o efeito do caça sobre os animais afetados, não sobre as pessoas que os matam.

    >O critério ecológico que você julga arbitrário, porém, faz todo sentido do ponto de vista de que as espécies ameaçadas, que alguns ambientalistas tentam salvar, são as espécies que nós mesmos atingimos com nossa ação, e por isso essa ação tem sentido reparativo em relação ao dano humano causado. Uma população pode voltar ao seu número ótimo em alguns anos, enquanto uma espécie desaparece para sempre. Sim, em termos individuais, cada vida é única. E isso significa que cada uma delas tem valor intrínseco, nenhuma deveria ser tirada para preservar uma espécie. Porém, o dano da perda de diversidade é incomparável. Se quiser me mostrar um link demonstrando que isso é falso, que a vida pode continuar normalmente com somente algumas espécies, tudo bem. Veja que não estou defendendo o intervencionismo preservacionista, estou apenas explicando que os critérios não parecem arbitrários como você diz.

    Bom, acredito que a perda de um indivíduo é incomparável, porque não considero que sejam meros exemplares de uma espécie como sugere o ecologismo. Repare que extinções também ocorrem naturalmente na natureza, com a grande maioria das espécies que já existiram. Além disso, têm surgido tecnologias para “ressuscitar” espécies extintas, o que tem gerado polêmicas sobre projetos para fazer ressurgirem inclusive espécies extintas por causas não antrópicas. Repare também que a perda da algumas raças ou tipos de seres humanos em sua forma original também seria irreparável, mas políticas para conservar a “pureza” de certas raças são corretamente consideradas como eugenistas, mesmo que essas raças envolvam algum tipo de perda de diversidade em certo sentido. Isso fica ainda pior porque conservacionistas se preocupam apenas com a existência daquele tipo de ser e de forma alguma com a situação dos indivíduos que fazem parte dele. Há sim alguns textos que abordam isso em mais detalhes:

    Magnus Vinding – A Ilusão Conservacionista

    http://blog.practicalethics.ox.ac.uk/2015/10/guest-post-what-if-anything-makes-extinction-bad/

    http://www.ledonline.it/index.php/Relations/article/view/822/664

    Também é importante notar, como já conversamos, o especismo das intervenções ecologistas genocidas, que são amplamente defendidas por ambientalistas, exceto quando prejudicam humanos. Se fossem aplicadas sem distinção de espécie, levaria à posição ecofascista bizarra de Pentti Linkola: http://www.penttilinkola.com/pentti_linkola/ecofascism/

    >A moral da história é que os limites populacionais são importantes para preservar as populações de um holocausto causado pelo seu próprio crescimento indefinido. E a predação é um desses mecanismos limitadores.

    E é um mecanismo bastante doloroso. Em muitos casos a contracepção, por exemplo, e outras ferramentas já ajudam ou podem ajudar causando menos danos (se é que causam), como explicado antes.

    >O que me surpreende é que você parece acreditar que sim, há ações humanas que são mais puras e mais nobres e mais merecedoras de veneração, ou ainda que a humanidade deva se tornar cada vez mais pura ou nobre ou venerável, que esse seria o objetivo da ética.

    Não sou adepto da ética das virtudes, ou algo parecido. Como ficaste sabendo, minha posição é que deve ser buscado aquilo que provoque literalmente as melhores consequências, independentemente da origem, embora algumas considerações deontológicas talvez possam ser incluídas. Humanos em geral estão em uma situação privilegiada, quer dizer, mais favorável e confortável que a grande maioria dos outros animais; em geral sofrem menos por mortes prematuras e vários tipos de sofrimento extremo. Como acredito que o prioritarismo faz sentido, acredito que (ao contrário de achar que humanos são mais nobres ou merecem veneração) há um dever moral de ajudar na medida do possível os indivíduos de outras espécies que estão em pior situação, não só quando a origem do dano é humana, e mesma que isso tenha um custo significativo para os humanos.

    >Se a morte produz continuação da vida, mas é um dano, e o dano deve ser evitado, logo aquilo que produz a vida deve ser evitado, logo a vida deve ser evitada. É isso? Seria melhor que não existisse vida, sofrimento e morte?

    Essa é a opinião dos antinatalistas, que pessoalmente não é a minha. Algumas pessoas argumentam que há uma assimetria entre experiências positivas e negativas, e que alguém não é prejudicado ao não começar a existir, enquanto os danos da existência não podem ser superados pelos benefícios.

    Embora eu particularmente não concorde com essa conclusão, a vida na natureza está sim muito longe de ser paradisíaca, e acredito que deve ser um objetivo de longo prazo buscar meios para minimizar mortes prematuras e dolorosas, de uma forma que isso não provoque consequências piores. Penso dessa forma assim como penso que deve ser um objetivo de longo prazo buscar meios para minimizar mortes prematuras e dolorosas causadas por doenças como câncer, AIDS e malária, por desastres naturais como vulcões e terremotos, por condições meteorológicas extremas como frio, calor, inundações e secas, e por acidentes, ferimentos, fome e sede, de uma forma que isso não cause consequências piores, e essas implicações práticas servem igualmente para humanos e não humanos sencientes, selvagens ou não. Considerando o interesse em viver como discutido antes, a vida não seria aquilo que deve ser evitado, por possibilitar experiências positivas e satisfação de preferências para os indivíduos sencientes.

    >Se nos limitarmos a falar de indivíduos, sequer seria correto usar o termo “predação”? Predação é uma relação entre espécies, não entre indivíduos. Um urso pode matar e comer uma série de animais com os quais não tem qualquer relação de predação.

    Acho que fica claro o que queremos dizer quando falamos de predação entre indivíduos, mas sendo isso uma questão de definição, podemos usar qualquer termo que seja mais adequado, mantendo o sentido.

    >Sim, canibalismo eventualmente pode ter uma função. Perdemos toda coerência ética se admitirmos que às vezes o canibalismo, o estupro e a mutilação acontecem na natureza, incluindo entre humanos? Novamente, não estou sugerindo que esses atos sejam justificáveis, ainda mais em condições completamente diferentes da natureza, como na civilização. Mas considerar que esses atos são intrinsecamente ruins não significa que devemos eliminá-los absolutamente do mundo, e muito menos que podemos impor isso a outras formas de vida.

    Não podemos impor que seres humanos não estuprem outros seres humanos? Se podemos, qual a diferença relevante deste para outros casos? Na natureza o estupro deixa de ser algo indesejável a ser evitado? Esses atos podem ser justificáveis em condições que não são diferentes da natureza, como entre humanos selvagens, sem contato com a civilização?? Não podemos buscar minimizar esses danos a longo prazo, mesmo que isso tenha probabilidade de causar melhores consequências que ficar de braços cruzados?

    >Mas com o fim da civilização, estaríamos sujeitos ao mesmo que todo ser humano e todo ser vivo sempre esteve sujeito na natureza. Se isso não é suficiente pra nós, é porque, em primeiro lugar, nos julgamos superiores, merecedores e capazes de algo melhor do que os outros animais. Diga como isso pode não ser especista.

    >você parte de uma concepção, que me parece absurda, de que o sofrimento só pode ser minimizado se houver intenção racional e benéfica por trás disso. Que só o homem, usando seu potencial técnico e racional, pode transformar a natureza num lugar decente.

    >Se não podemos fazer apartheid das espécies, e eu concordo com isso, então a civilização como um todo nem deveria existir, e sem ela você ficaria sem os meios para se posicionar contra a predação e demais processos biológicos.

    >“A distinção entre natureza e cultura como proposta pelos seus comentários parece carecer de fundamentos e justificativas. Considere um grupo de seres humanos (sejam civilizados ou não) vítimas de um desastre absolutamente natural como um vulcão ou um terremoto. Quase todas as pessoas concordariam que as consequências do desastre são lamentáveis e que devemos fazer o possível para ajudar as vítimas. Não há qualquer manobra possível que não inclua o especismo para justificar a preocupação com humanos (civilizados ou não) e o completo descaso para com os animais selvagens.”
    Estamos totalmente de acordo que um desastre natural é lamentável e que devemos ajudar as vítimas, sendo elas humanas ou não.

    Sim, se buscamos nos beneficiar da civilização enquanto excluímos os outros animais estamos sendo especistas e nos julgando superiores e merecedores de algo melhor (essa é a posição predominante entre a maioria das pessoas, incluindo veganos). Mas é evidente que isso pode ser evitado se oferecermos a mesma ajuda de que dispomos aos outros animais sencientes, sem promover problemas maiores. E se o fim da civilização implicar a eliminação de ferramentas que podem ajudar, mais do que prejudicar, humanos e não humanos, seria imaturo eliminá-las. Qual critério você acredita que deve ser usado para limitar o uso de ferramentas de uma forma que não seja arbitrária e não impeça mais benefícios do que malefícios? Não estou dizendo que a tecnologia é neutra ou que o “progresso tecnológico” deva ser incentivado sempre. No contexto atual, esse desenvolvimento poderia acelerar coisas como a colonização espacial (que aumentaria o sofrimento), armas baseadas na inteligência artificial ou mesmo um grande colapso. Grande parte das tecnologias, incluindo muitas que poderiam ajudar, estão sendo usadas para explorar animais. Um exemplo recente é o uso de modificações genéticas para criar órgãos humanos em outros animais, para servirem de transplante depois. Mas isso não significa que todas as ferramentas devam ser abandonadas. Elas estão aí, e aqueles que as usam para objetivos prejudiciais não vão parar se formos contra a tecnologia como um todo. Algumas vezes esse uso causa benefícios indiretamente, como nas intervenções na natureza para vacinar animais contra certas doenças que podem afetar humanos, animais mais valorizados por humanos ou o meio ambiente. Os animais vacinados com certeza são beneficiados, apesar de o objetivo da intervenção ser outro.

    Entretanto, a teoria anticivilização (apesar de divergências), se colocada em prática, provavelmente eliminaria os melhores meios para ajudar. Como ficaria no caso de abrigos e hospitais? Alguns participantes do movimento anticivilização, quase sempre recorrendo a apelos à natureza ou outros argumentos questionáveis que já conversamos, propõe sabotar a tecnologia mesmo que isso inclua, além de impedir usos benéficos, matar inocentes, de uma forma um tanto utilitarista e problemática. Outros propõem alternativas como viver de forma agroecológica em comunidades permaculturais por exemplo, o que costuma envolver exploração de animais ou no mínimo formas de controle biológico de animais considerados como pestes e que podem ser mais prejudiciais que as formas convencionais. Não sei se você concorda com as propostas desses exemplos em particular, mas até agora não me recordo de alguma boa solução para esses problemas complexos que tenha sido proposta por esse movimento, considerado tudo o que estivemos discutindo.

    >Não são os humanos como um todo que pensam assim, são somente os civilizados. A morte não é sempre considerada prejudicial, isso mesmo em culturas que nem tem o conceito de eutanásia.

    Como pode imaginar, estava me referindo à maioria das pessoas e às visões predominantes. Sabe de evidências que expliquem porque mortes prematuras e dolorosas não são prejudiciais?

    >“Sim, as relações devem ser levadas em conta. Por outro lado, muitas vezes o interesse do grupo poderia ser buscado sem prejudicar os indivíduos, ou minimizando os prejuízos a estes. Além disso, não se trata de suicídio altruísta no caso da caça/predação. A morte da presa não é voluntária, não é um suicídio.”
    Quanto a isso concordamos e não vejo nenhum problema. Mas se você é capaz de aceitar o sacrifício voluntário, então não há qualquer motivo para não aceitar a predação. Veja só: o indivíduo que se entrega não precisa ter interesse na sua própria morte, ele meramente reconhece a necessidade de relativizar, naquele caso, o interesse na sua própria vida. Caso ele não reconheça, o erro será dele, não dos outros. Ele é que estará escolhendo a competição ao invés da cooperação, colocando sua vida acima da vida de outros. Sua vida não perde valor porque ele se entrega nem ganha valor porque ele luta por ela, correto? Então você teria que admitir que em algumas situações é moral matar. Os animais não se entregam voluntariamente porque não fazem esse tipo de consideração. Não precisa ser voluntário se é necessário. E não deixa de ser uma cooperação.

    Está a dizer que os animais erram (ou errariam se fossem agentes morais) ao não se entregarem voluntariamente aos predadores? E por que não recomenda que humanos se entreguem voluntariamente a predadores para participarem dessa cooperação oculta e necessária? Faria isso se fosse atacado, mesmo tendo chances para escapar? E por que isso seria sempre preferível, mesmo que existam soluções com probabilidade de causar melhores consequências.

    Veja este texto satírico: http://www.theonion.com/article/dying-lion-sure-doesnt-feel-as-though-hes-completi-28981

    >Não lhe ocorre que as coisas na natureza só são como são porque, como um rio, esses processos aleatórios levam necessariamente ao caminho de menor gasto de energia, e que qualquer interferência tende somente a aumentar o sofrimento?

    >uma das suas premissas é a crítica à visão “idílica” da natureza. Ela não é boa porque se fosse reduziria a quantidade de sofrimento ao invés de aumentar… Mas que lógica é essa? Qual a base para esse tipo de afirmação senão uma abstração completa, uma idealização de como a natureza deveria funcionar? Diminuir o sofrimento total me parece tão impossível quanto se opor à lei da entropia.

    Que evidências demonstram que o menor gasto de energia é o mesmo que o a menor quantidade de sofrimento? Já falamos repetidas vezes sobre dinâmica populacional e como ela e outros fatores geram sofrimento imenso mesmo quando significam o menor gasto de energia. Muitas industrias decidiram por sistemas de produção que levaram a más condições de trabalho e ao abuso dos funcionários, e às vezes também a produtos de qualidade inferior, porque esse sistema é o que tem menor gasto de energia. Acreditas então que esse é o modelo de produção que deveria ser mantido, e que qualquer mudança aumentaria (como?) o sofrimento?

    Quanto ao resto, (1) como já argumentado, está mais que demonstrado que a vida da maioria dos animais não é harmônica e paradisíaca como mostram filmes da Disney ou como muitos ecologistas acreditam. (2) a consideração pelos animais selvagens leva em conta os seus próprios interesses, conforme falado mais de uma vez, e não valores de (apenas alguns) humanos, como, por exemplo, que só a liberdade, o que é natural e o status quo importam. Logo a idealização de como a natureza deveria funcionar está nestes últimos e não o contrário. (3) Se achas que diminuir o sofrimento total é tão impossível quanto se opor à lei da entropia, então provavelmente não concorda com o tratamento de ferimentos ou doenças; nem com impedir uma criança de agredir outro indivíduo; aliviar a fome, sede, calor ou frio através de alimentos, água ou condições mais sadias; nem com resgates ou prevenção de desastres naturais; e possivelmente também é contra que essas coisas sejam empregadas em larga escala para ajudar outros, incluindo humanos.

    >O critério de senciência apenas indica quais seres sentem algo semelhante ao que nós chamamos de sofrimento. Isso ajuda nas considerações éticas, mas por si só não é suficiente para pretendermos eliminar a predação na natureza. Possuir um sistema nervoso central significa apenas ter um ancestral comum com um ser que desenvolveu um padrão resultante de processos aleatórios, é apenas um tipo de adaptação que levou alguns seres a obterem sucesso, e usá-lo como critério para valorizar a vida é tão arbitrário quanto usar qualquer outro órgão. Qual a diferença entre antropocentrismo e a centralidade do cérebro, que é o órgão que dizemos o que ser humano mais desenvolveu?

    >Existe alguma diferença intrínseca entre indivíduo e coletivo? Um ser completamente diferente de nós poderia perceber essa diferença por conta própria? “Sistema nervoso central” é somente um nome que criamos para chamar um conjunto de células que possuem uma mesma função. Chamar essa função de “consciência”, como se ela fosse totalmente distinta de outras funções corporais, é misticismo. Se a centralidade deve ser genética, ou seja, só podemos considerar dignos os seres com ancestral comum, que possui estruturas que nós prezamos porque relacionamos com nossa própria consciência, então isso é apenas outro tipo de divisão arbitrária entre os seres. Se a centralidade for a função, então deveríamos considerar também outras estruturas com funções semelhantes.

    >Como você separa processos biológicos de processos conscientes? O que você chama de consciência é apenas o efeito de uma série de processos químicos, orgânicos, físicos. A consciência não tem existência própria, é só uma coisa da qual gostamos de nos gabar. Não tem maior valor que a capacidade de fotossíntese.

    Alguém poderia dizer que a senciência ajuda nas considerações éticas mas não é suficiente para demonstrar que não está ok matar pessoas, poderia dizer que isso é apenas um tipo de adaptação que temos com um ancestral comum e que é arbitrário usar isso para tentar evitar sofrimento em humanos.

    O sistema nervoso centralizado, ou outra estrutura que comprovadamente tenha a mesma função, é o que permite a existência de experiências positivas ou negativas, que é o que permite que alguém possa ser prejudicado ou beneficiado. De acordo com esse critério, basta que existam tais experiências para o ser ser passível de consideração moral. O desenvolvimento do cérebro ou outras estruturas pode estar relacionado à cognição, mas não necessariamente à consciência. Esse desenvolvimento pode dar origem a novos tipos de experiências, mas isso não implica que haja uma hierarquia baseada no desenvolvimento do cérebro. Alguns autores defendem ainda que a cognição permite que algumas formas de sofrimento sejam amenizadas, logo pode haver casos em que o sofrimento ou outras experiências sejam mais significativos em animais não humanos que em humanos.

    >perceber que essas relações são complexas demais para que intervenções controladoras sejam benéficas é um dos argumentos a favor da autonomia.

    Em geral, tudo o que foi dito sobre liberdade e cumprimento de capacidades antes também se aplica a autonomia. A autonomia tem valor na medida em que pode ser desfrutada. Seres que passam fome ou outros danos intensos e morrem prematuramente não são exatamente autônomos, e se fossem, isso não significaria que é só a autonomia que importa. Como no caso do exemplo de comunidades agroecológicas anticivilização, pode existir autonomia e autossuficiência, mas envolvendo a exploração e discriminação de seres sencientes. Assim, autônomo não significa necessariamente ser bom.

    >Para você o bem do indivíduo implica na minimização do sofrimento. Primeiro, seria interessante se você demonstrasse que o sofrimento PODE ser diminuído sem comprometer os processos que tornam a vida possível. Para afirmar isso, não é suficiente mostrar que você é capaz de fazer um ou dois indivíduos deixar de sofrer algo que ele sofreria na natureza, mas sim que é possível que os mesmos processos que possibilitam a vida ocorram sem possibilitar também a morte e o sofrimento. Você teria que provar que pode fazer melhor que esses processos cegos que criaram a vida.
    >Mas o que você estava afirmando parecia ir muito além. Você estava criticando não apenas uma atitude que contradiz a empatia humana, não de se lamentar e não desejar ajudar quem parece estar sofrendo, mas sugerindo que deveríamos usar os meios tecnológicos disponíveis para eliminar os desastres naturais da existência, como se não devessem existir, como se sua permanência e seus efeitos fossem responsabilidade nossa, como se coubesse a nós decidir se vulcões ou terremotos devem continuar existindo. E como se nosso aparato tecnológico pudesse realizar algo assim sem causar nenhum problema pior. E isso é uma implicação que não se segue, e algo com consequências completamente diferentes.
    >Ajudar animais sendo predados é uma coisa, não vejo problema nisso. Pretender eliminar a predação, por meio de um sistema tecnológico que é inerentemente especista, isso é que não tem sentido. Vá e faça o que puder para ajudar o máximo de animais possível. Eventualmente você irá perceber que tentar eliminar o sofrimento natural é tão absurdo quanto eliminar a entropia. Salvar animais da predação só pode ter as seguintes consequências: 1 – outro animal será predado. 2 – o predador morrerá. 3 – o predador sobreviverá graças a um aparato tecnológico, mas deixará de expressar seus instintos de caça, tornando-se como um animal domesticado, e a presa precisará ter sua população limitada por um fator antrópico, sendo colocada numa espécie de reserva. Temos algum direito de confinar, domesticar ou tirar os seres de seus habitats naturais? Enfim, agir contra a predação em geral exigiria o controle totalitário da civilização sobre os seres da natureza.

    Uma coisa que precisa ser compreendida é que uma solução não precisa ser perfeita para ser boa (ver falácia do Nirvana). O fato de uma doença não ter cura não significa que devemos deixar de prevenir e mitigar os seus efeitos negativos. Existe um monte de exemplos que demonstram que é viável ajudar animais selvagens, inclusive em larga escala. A dificuldade ou mesmo a impossibilidade de erradicar um problema não quer dizer que é melhor não fazer nada a respeito. E dado que a natureza não é um paraíso como alguns gostam de pensar, que os animais selvagens passam por situações intensamente negativas, em um número muito grande de indivíduos, e que isso recebe muito pouca atenção, não é fácil tornar a situação pior do que está e mesmo pequenas melhoras têm um grande valor. Aumentar os debates sobre o tema e buscar mais conhecimentos sobre isso também são coisas especialmente importantes.

    Sobre a predação, concordo com a importância de ter precaução com as consequências negativas, mas isso não é suficiente para abandonar o assunto. Essas preocupação jamais justificam desistir de salvar humanos sendo predados. Um planeta menos violento para os seres sencientes é um objetivo justo e desejável. A predação realmente é bastante complexa e o primeiro passo é reconhecer como ela é prejudicial, porque nenhum animal, incluindo humanos, gostaria de ser comido vivo. Acabar realmente com a predação é outro assunto. Atualmente não temos conhecimentos para fazer isso, assim como não conseguimos acabar com todas as doenças que existem. Mas podemos começar a pensar em cenários alternativos e já algumas sugestões quanto a isso, mas é preciso mais conhecimentos. Porém, um caso concreto em que podemos evitar um bocado a predação é não espalhá-la para lugares onde ela não existe, como no caso da colonização espacial. Levar em conta o dano da predação poderia prevenir o sofrimento de inúmeros seres sencientes desta forma. Embora a tecnologia seja uma ferramenta que pode ajudar, não quer dizer que as intervenções necessariamente tenham que frustrar instintos (e mesmo nos casos em que isso acontece, muitas vezes a frustração de instintos é um danos menos pior que os danos que isso previne). Apesar do tema ainda ser pouco desenvolvido, existem intervenções que poderiam ser feitas diretamente em ambientes selvagens sem confinar ou afetar negativamente os animais (rever o trecho em que o David Pearce fala sobre intervenções para ajudar elefantes). E mesmo se o que você fala em relação aos danos que intervenções teriam sobre os predadores fosse verdade, não o seria em relação a outros danos como fome, sede, doenças, condições climáticas, etc., que correspondem a grande parte dos danos naturais.

    >“do ponto de vista da vítima, não importa a origem do dano, se é um ser humano ou um processo natural”

    Eu concordo que, se nós tivéssemos, por conta de nossa capacidade, a responsabilidade de evitar todo dano possível aos seres que possuem interesse de evitá-lo, então deveríamos fazê-lo, mas ao fazê-lo necessariamente nos colocaríamos acima destes, no papel de deuses. Dizer que estaríamos nos omitindo ao “permitir” a morte ainda implicaria na responsabilidade, na superioridade, no papel de deus. Como se a morte precisasse de nossa permissão. Não há omissão se não há responsabilidade. Como a situação da predação pode ser “severa”, se sempre existiu?

    Não dizemos que ao salvar uma pessoa de acidentes, desastres, doenças, etc. (coisas que sempre existiram e não são nossa responsabilidade), alguém está se colocando acima da vítima ou no pepel de deuses, quer haja responsabilidade direta ou não. Pelo contrário, deixar de salvar é que seria considerado imoral. Se estamos decidindo o destino do indivíduo ao intervir, ao não intervir também estamos decidindo, e em muitos casos isto pode ter consequências muito piores.

    >Veja bem, o ato civilizado de comer animais não pode ser considerado predação, a relação predador-presa não existe mais nesse contexto. Comparar o que fazemos com predação, parasitismo ou qualquer outra relação que no fundo é simbiótica é um erro, porque o próprio avanço tecnológico nega a simbiose com os processos biológicos, que são lentos.

    Existem diversos estudos que mostram a evolução ocorrendo naturalmente de forma bastante rápida em situações específicas. Alguns defensores do consumo de carne dizem que isso é uma relação simbiótica, do seu ponto de vista ecologista centrado em espécies

    >“Da mesma forma, dado os problemas da civilização atual, não vejo razão para concluir que a única solução esteja em copiar outras culturas que existiram antes.”
    Veja bem, não se trata de copiar culturas que “existiram antes”. Note o erro dessa afirmação, ela trata culturas ancestrais como se elas não existissem mais, ou pertencessem ao passado, como se a nossa fosse mais avançada no tempo, como se o desenvolvimento tecnológico fosse determinado pelo tempo da história humana, ou como se as sociedades humanas pudessem ser colocadas numa escala linear de cultura que tem a nossa como ápice. Isso é etnocentrismo.

    Não, o que disse é que você toma como modelo culturas que existiram no passado. Isso é apenas dizer que você parece não estar aberto a sociedades diferentes das que existem ou já existiram, como se não existisse a possibilidade de inovação. O fato delas terem existido no passado nada diz sobre elas existirem no presente ou no futuro, do contrário eu diria algo como “elas não existem mais”.

    >Veja bem, se eu puder ajudar uma formiga ao invés de pisar nela, com certeza o farei. Faria o mesmo com o um robô, ou um barquinho de papel. É uma questão de empatia, mesmo que o outro não sinta nada. Mas meu desejo natural de que outros seres não sofram, ou minha capacidade de considerar o desejo deles de não sofrer, não justifica que alteremos ou destruamos relações naturais, substituindo por relações reguladas por fatores antrópicos, como se tivéssemos esse direito sobre o mundo. Isto sim implica em especismo

    Papel e outros objetos inanimados, e também seres vivos que não são sencientes, por definição não tem experiências positivas nem negativas, nem interesses e preferências (moralmente) e por isso não podem ser moralmente prejudicados ou beneficiados. O biocentrismo ou algo parecido seria desastroso se colocado em prática por causa dos conflitos de interesse que causaria. Por exemplo, a proteção de determinadas plantas é um dos tipos de intervenção ecologista que mata animais selvagens em massa.

    Assim como acontece com outras relações naturais como infanticídios, fratricídios, competição destrutiva e outras, a coerção sexual, da mesma forma que a predação (com a diferença de que uma envolve indivíduos da mesma espécies e a outra indivíduos de espécies diferentes) é um tipo de relação natural (em vários casos não é consequência da civilização) que foi selecionado pelos processos evolutivos, e que muitas pessoas têm com razão buscado combatar no caso de vítimas humanas, substituindo por fatores antrópicos. E é evidente que combater essas relações não é considerado uma forma de discriminação nos casos que envolvem humanos. Pelo contrário, não combater e se omitir é o que é considerado uma discriminação para com as vítimas.

    Curtir

Deixar mensagem para Contragaia Cancelar resposta